“Não podemos mais ser reféns da nossa própria polícia”
A cineasta fala sobre ‘À queima roupa’, documentário sobre a violência policial no Rio
A grande epidemia da América Latina hoje é a violência, que ganha contornos ainda mais graves quando se origina no seio do Estado – aquele que deveria proteger a sociedade em lugar de ameaçá-la.
A atuação violenta da polícia do Rio de Janeiro inspirou a cineasta Theresa Jessouroun a realizar o documentário À queima roupa, lançado com grande sucesso durante o último Festival do Rio e que está em cartaz nos cinemas cariocas há algumas semanas. O filme começa com a chacina de Vigário Geral, ocorrida em 1993, e mostra uma sucessão de episódios que geraram graves sequelas sociais em comunidades carentes da cidade – mas que rapidamente desapareceram da mídia ou mal passaram por ela.
À queima-roupa chega nesta quinta-feira a São Paulo, com uma sessão inaugural aberta ao público que inclui um debate com a diretora e convidados. E o programa se faz urgente, já que na última terça-feira foram divulgados números que revelam um aumento do número de mortes cometidas no país por policiais. São hoje assassinados por dia seis brasileiros na mão da polícia. “Até quando?”, questiona Theresa no filme e em entrevista exclusiva ao EL PAÍS.
Pergunta. O que a motivou a denunciar a atuação violenta da polícia no Rio de Janeiro em um documentário?
Resposta. O que sempre me motiva a fazer documentários são temas sociais. Acho que o documentário tem uma função social importante. Enquanto a ficção atrai o espectador pelos atores, ele faz isso pelo tema. No caso do À queima roupa, eu queria falar inicialmente da chacina de Vigário Geral, mas comecei a pesquisar e apareceram muitas outras. É um problema institucional que dura anos, e um problema nacional, não um fato pontual. Nesta terça-feira, saiu uma nova estatística, que diz que a polícia mata seis pessoas por dia no Brasil. Como não fazer um documentário a respeito? Quantas pessoas precisam morrer para que essa situação mude?
P. O que surge na sua pesquisa para a realização do filme que não tinha vindo à tona até hoje?
R. Acho que muita coisa. Claro que a imprensa não mostra o que está no filme. As pessoas reclamam de violência na TV. Nesse sentido, há muita coisa inédita no documentário, porque eu não tive medo de mostrar imagens violentas. Por que só eles [os moradores das favelas] têm que ver aquilo? Por que essas imagens nunca chegam na Zona Sul? Por outro lado, acho que consegui ganhar das pessoas que participaram uma certa confiança. Elas viram que eu estava fazendo um trabalho sério e toparam falar. Claro, foram vários encontros durante oito meses intensos de pesquisa. Eu conversei bastante antes de gravar, e elas tiveram a certeza de que podiam confiar que eu não ia fazer nada que elas não tivessem aprovado. As pessoas têm medo, afinal esses policiais estão soltos e frequentam as comunidades afetadas.
P. Houve algum momento em que você pensou em desistir, por dificuldades ou inclusive ameaças?
R. Nunca. Mas tive muita dificuldade de achar as pessoas. Havia muitos casos que eu queria que estivessem no filme, mas não estão, porque as pessoas não queriam falar ou estavam em programas de proteção à testemunha. É um tema difícil. Às vezes eu tinha três personagens confirmados num dia, mas no fim ninguém gravava.
P. O que você achou da comparação do seu documentário com Tropa de elite, do José Padilha?
R. Achei interessante. Os dois filmes são violentos, mas a diferença é que Tropa de elite tem o olhar de dentro da polícia. À queima roupa mostra o resultado da violência policial na sociedade. Eu não tinha ideia de como isso impactava nas pessoas, mas esse lado social foi aparecendo e eu achei importante colocá-lo no centro. A polícia é o Estado, e aqueles que sofrem crimes causados pelo Estado devem ser amparados por ele. Mas elas não têm acesso aos seus direitos, não conseguem advogados.
P. Qual foi a reação do público ao filme até agora?
R. Foi a melhor possível. Eu não esperava que houvesse tamanha repercussão. Entrar na seleção do Festival do Rio, que é o mais importante do país, foi ótimo, deu muito destaque ao filme. Aproveitamos e fizemos o lançamento comercial uma semana depois, e já faz quatro semanas que ele está em cartaz no Rio. As pessoas que participaram do filme e o viram depois adoraram. Isso também era muito importante pra mim.
P. O que você opina sobre a violência no Rio em tempos de Copa do Mundo e Olimpíadas? Algo mudou desde a chacina de Vigário Geral, em 1993?
R. A violência da polícia continua em todo o Brasil. No Rio, no contexto da Copa, as UPPs foram medidas importantes, mas muita coisa não foi feita ou não deu certo. Muitos policiais nas UPPs estão envolvidos com a violência. Sabemos que é uma parcela da polícia, e não toda a polícia, que age desta maneira, assim como as milícias, que são um problema grave hoje no Rio de Janeiro. Há números alarmantes, como o que diz que de 2001 a 2010 houve 9.646 autos de resistência no Rio, ou seja, casos em que a polícia mata alegando se defender. São números de guerra. Mas sou otimista. A chegada do coronel Ibis Silva, que tem uma reputação séria e agora é comandante geral da polícia no Rio de Janeiro, é um sinal de que vamos começar a mudar. Não podemos mais ser reféns da nossa própria polícia.
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