Anestesiados pela violência
Vivemos hoje uma total indiferença em relação à violência: notícias já não nos sensibilizam
Estive algumas vezes no México, sendo a mais recente em setembro, quando percorri de carro os pouco mais de 300 quilômetros que separam a Cidade do México de Xalapa, uma rodovia ampla e segura que oferece-nos uma paisagem inacreditavelmente diversificada, incluindo os espetaculares vulcões Popocatépetl e Iztaccíhuatl, um ao lado do outro, a mais de 5.400 metros de altitude. Comentava com Paco, o motorista que me acompanhava, sobre as belezas naturais, a riqueza do passado e a simpatia do povo, quando veio à tona a notícia do desaparecimento de 43 estudantes no estado de Guerrero.
O que nos parecia, em princípio, um fato revoltante, com o passar dos dias revelou-se um entrecho de terror. Os normalistas voltavam para sua cidade, após participarem de um protesto contra a forma de distribuição de vagas na universidade local, quando foram surpreendidos pela polícia, que, atacando os ônibus em que viajavam, causou a morte de seis pessoas e o sumiço de outros 43 adolescentes. Entregues, pasmem!, a um cartel de narcotraficantes, eles ainda não foram encontrados, nem vivos, nem mortos... As investigações apontam para um obsceno conluio entre autoridades governamentais e bandidos...
Apesar do absurdo da situação, esse não é um acontecimento isolado na história contemporânea do México. O país tem hoje regiões inteiras dominadas por bandoleiros, estradas proibidas para o tráfego, cidades fantasmas e campos abandonados. E uma população amedrontada e impotente, acuada pela aliança entre delinquentes e policiais, dominada por políticos corruptos, cujos interesses se confundem com os dos chefões do narcotráfico.
Mas não é do México que quero falar. É do Brasil.
Os números relacionados à violência no Brasil são estarrecedores. Segundo dados reunidos pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais, ligada à Unesco, tivemos 56 mil homicídios em 2012, ou 154 assassinatos por dia, o que nos coloca no vergonhoso sétimo lugar entre os países mais violentos do mundo. A morte de jovens, entre 15 e 29 anos, representa mais da metade de todos os homicídios – embora essa faixa etária corresponda a 27% do total da população. Todas as capitais apresentam níveis de violência considerados epidêmicos (mais de 10 homicídios para cada 100 mil habitantes), e as estatísticas mostram que não é muito diferente a situação nas cidades do interior.
Relatório da ONU coloca o Brasil como campeão de apreensão de crack nas Américas – o dobro do segundo lugar, os Estados Unidos –, o que demonstra o tamanho da demanda pela droga no país. O mesmo documento revela que somos hoje o principal corredor de exportação da cocaína produzida nos Andes (Bolívia, Colômbia e Peru) para os Estados Unidos, Europa e África. Estudo do investigador Daniel Cerqueira, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), concluiu que ao longo da primeira década do século XXI houve um aumento de mais de 170% no consumo de drogas no Brasil, o que teria contribuído significativamente para o crescimento da violência. Em 30 anos, entre 1980 e 2010, houve um crescimento de 500% no número de homicídios, em sua quase totalidade provocados por armas de fogo.
O tenebroso sequestro dos 43 estudantes mexicanos ocorreu no dia 26 de setembro – no mesmo dia iniciava-se uma onda de terror em Santa Catarina, o estado com os menores índices de violência do Brasil. Durante mais de um mês, bandidos, comandados por traficantes de dentro dos presídios, incendiaram ônibus e veículos particulares, atacaram viaturas policiais e casas de agentes penitenciários, levando o pânico à população em mais de 30 cidades. Alguém pode dizer que não há como comparar a situação de ambos os países. Mas a pergunta que fica é: esse clima de pavor já não está instalado há tempos nas periferias das cidades brasileiras, sejam elas pequenas ou grandes? Já não assistimos, aqui também, uma forte ligação entre políticos e policiais corruptos e traficantes de drogas?
O que vivemos hoje é uma total indiferença em relação à violência. Parecemos anestesiados: as notícias sobre assaltos, estupros, assassinatos, já não nos sensibilizam. Nenhum dos candidatos com chances de vencer as eleições presidenciais – nem a que ganhou, nem os que perderam – ofereceram propostas concretas para combater o crime organizado. Um país democrático não é apenas aquele em que os administradores são eleitos pelo voto direto – um país democrático é o que garante os direitos mais elementares dos cidadãos, entre eles, essencial, está o direito de ir e vir, o de saber que nossos filhos e parentes e amigos saem para trabalhar, para estudar ou para se divertir e estarão de volta sãos e salvos em suas casas. Não é o nosso caso: hoje, somos reféns da nossa apatia. Até quando assistiremos impassíveis a nossa derrocada?
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