O Brasil hipócrita: a questão do aborto
Infelizmente, ganhe quem ganhar a eleição continuaremos a deixar morrer 10.000 mulheres todo ano
Não há nenhuma novidade em afirmar que os brasileiros somos antes de tudo hipócritas. Parecemos as crianças que, ao tapar os olhos com as mãos, pensam que se tornam invisíveis. Adultos, continuamos a agir assim: fingimos não ver o que ocorre à nossa volta e acreditamos que isso faz com que a realidade não exista. Estamos em plena campanha política para a Presidência da República e o discurso dos principais candidatos – os que podem, em tese, chegar a ocupar o Palácio do Planalto – não difere em nada quando se trata de refletir sobre assuntos essenciais para elevar o Brasil a um patamar de país civilizado.
Tomemos o caso da descriminalização do aborto. Aécio Neves (PSDB), Marina Silva (PSB) e a presidenta Dilma Rousseff (PT) defendem a manutenção da atual legislação, vigente desde 1940, que prevê a legalidade do aborto em apenas dois casos: riscos de vida para a mãe e gravidez por estupro. Esta posição não está necessariamente assentada em questões éticas ou de foro íntimo dos concorrentes, mas é uma concessão a grupos de pressão religiosos – que aqui une nas mesmas fileiras católicos, protestantes, pentecostais, neopentecostais, espíritas – que representam, ao fim e ao cabo, milhões de votos nas urnas.
Em 2012, foram realizados 1.542 abortamentos legais por razões médicas pelo Sistema Único de Saúde (SUS). Embora não haja estatísticas confiáveis, pois o assunto é tabu na sociedade e sua prática crime previsto em lei (um a três anos de detenção), calcula-se em mais de um milhão o número de abortos ilegais praticados por ano no Brasil, em geral consumados em locais que exibem péssimas condições de higiene. Além de mortes, os abortos mal sucedidos acabam provocando esterilidade nas mulheres e má formação nos fetos.
Para ter direito de realizar um aborto legal pelo sistema público de saúde, a paciente passa por uma avaliação médica para justificar que corre risco de morte – nem mesmo a gestação de um feto sem cérebro, ou seja, sem qualquer possibilidade de vida, garante a automática execução do procedimento. No caso de estupro, a mulher tem que acorrer à Justiça para provar a necessidade de interromper a gravidez decorrente de uma relação não consentida, algo extremamente constrangedor e traumático numa sociedade como a nossa, machista e misógina. Por isso, em sua grande maioria, nessa situação as vítimas preferem acudir-se em clínicas clandestinas ou em perigosas soluções domésticas.
No entanto, não são esses os principais motivos pelos quais as mulheres recorrem ao aborto, mas sim a gravidez imprevista, fruto de uma relação sexual fortuita ou de uma gestação indesejada. E aqui nos deparamos com o imenso abismo que segrega pobres e ricos no Brasil. As mulheres que possuem dinheiro para pagar esse procedimento obstétrico fazem-no com segurança em clínicas de alto padrão ou mesmo no exterior, com riscos mínimos. Já as de modesta condição financeira veem-se na contingência de submeter-se a charlatães ou a agulhas de tricô que rompem a bolsa amniótica e perfuram o útero. Todo ano, 250.000 mulheres recorrem ao SUS para executar curetagem pós-aborto – outras 10.000 perdem a vida, vítimas de septicemia ou de hemorragias inestancáveis.
Desde 1891, somos um estado laico. Portanto, conceitos religiosos estritos, como o que impede a legalização do aborto sob a alegação de que a vida se inicia no momento da concepção, não deveriam servir como argumento jurídico. Ao invés de criminalizar a prática do aborto, deveríamos adotar nas escolas de todos os níveis um abrangente ensino de educação sexual voltada principalmente para a compreensão da responsabilidade social masculina e feminina, além da distribuição massiva de preservativos e orientação no uso de métodos contraceptivos. Por outro lado, deveríamos simplificar os procedimentos de autorização de abortos em casos de estupro e riscos de vida da gestante e deixar a critério da mulher, única dona e senhora de seu corpo, a decisão de abortar, conforme avaliação médica. No entanto, infelizmente, ganhe quem ganhar a eleição no dia 26 de outubro, continuaremos a deixar morrer 10.000 mulheres todo ano, fruto único de nossa hipocrisia cristã.
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