O risco de se aproximar da ‘civilização’
Após fugir de seu território por ameaças, um grupo de índios isolados contrai doenças para as quais não têm imunidade
No primeiro contato, em 27 de junho, eles eram sete: cinco homens e duas mulheres, que aparentavam ter menos de 20 anos, seguravam flechas e uma espingarda, falavam uma língua desconhecida naquela região amazônica, no Estado do Acre, perto da fronteira do Brasil com o Peru. Após avistarem um barco da Fundação Nacional do Índio (Funai), se aproximaram e gesticularam.
Os funcionários retiraram alguns peixes que traziam na canoa e deixaram às margens do rio. Foi quando ouviram os homens se referirem aos animais como “capiriba” e “huiuã”, palavras similares às usadas pelos índios jaminauás, que vivem a cerca de 400 quilômetros dali.
Os funcionários entraram no barco e foram embora, seguindo a política praticada desde 1988, de se aproximar de povos isolados da mata apenas quando eles correm riscos – antes disso, a regra era descobrir esses grupos e afastá-los de áreas necessárias para a construção de projetos de infraestrutura e confiná-los em outro local.
Dois dias depois, os mesmos índios voltaram a aparecer perto dali. Agora, na aldeia Simpatia, do grupo ashaninka, a última antes da fronteira, localizada em uma área demarcada chamada Terra Indígena Kampa e Isolados do Rio Envira. Cantaram, imitaram macacos e, ao avistarem um homem com uma espingarda, ameaçaram: “Se nos maltratarem, vamos botar feitiço em vocês”, conforme registrado em um vídeo, traduzido posteriormente. Batiam na barriga, em um sinal interpretado como um aviso de que tinham fome. Receberam dos ashaninka dois cachos de bananas, e, num ritual de troca, entregaram a eles um jabuti. Entraram na aldeia e diante da passividade dos presentes saquearam um calção e um machado. Foram embora. No dia seguinte, se aproximaram mais uma vez: um dos homens espirrava e tossia.
O Itamaraty pediu ajuda ao Governo peruano para identificar as pressões e tentar contê-las
A possível gripe acendeu um sinal de “alerta máximo” na equipe da Funai, que, até então, tentava convencê-los a voltarem para a mata. Vivendo isolados provavelmente por toda uma existência, esses índios não têm imunidade para as doenças dos brancos. Por isso, casos de contatos costumam ser desastrosos: uma doença não tratada pode exterminar de 50% a 90% de um grupo, diz a Funai. Quando decidem deixar o isolamento, esses índios demoram três gerações para adquirir a imunidade necessária para lidar com gripe, malária, hepatite ou sarampo, doenças comuns entre os brancos e índios da região. Os sete do grupo acabaram contraindo gripe.
A Amazônia brasileira é a área com a maior quantidade de índios isolados do mundo, de acordo a organização não-governamental Survival International, que tem uma vasta pesquisa com foco nos grupos isolados. Segundo a Funai, existem ao menos 104 registros de presença de índios isolados no país – 26 grupos já foram localizados, confirmados e são monitorados de longe pela entidade. Quatro deles estão no Acre, sendo um deles os isolados do Xinane, de onde vêm esses sete índios. A aproximação deles é o maior caso de contato já registrado pela Funai desde 1988, quando a política mudou. Foi a segunda vez que a procura partiu dos indígenas.
O fato causa preocupação. É um indício de que a área onde vivem está em risco. “Eles nos relatam que estão fugindo de uma situação de conflito, ligado a uma pressão sobre o território deles”, contou Leonardo Lênin Santos, coordenador de Proteção e Localização de Índios Isolados da Funai, em uma audiência convocada pela Comissão de Meio Ambiente do Senado para discutir a situação, na semana passada. “A dinâmica desses povos isolados está sendo mudada em função dessa pressão territorial. Estamos lidando com relatos de massacres. Eles contam que houve isso com esse grupo”, ressaltou. Há suspeitas de que eles tenham fugido do lado peruano da fronteira, onde a ação de madeireiros é registrada.
Os índios não têm imunidade para as doenças dos brancos: uma doença não tratada pode exterminar de 50% a 90% de um grupo
Nesta terça, em uma coletiva de imprensa em Brasília, a presidenta da Funai, Maria Augusta Assati, esclareceu que o Itamaraty pediu ajuda ao Governo peruano para identificar as pressões e tentar contê-las. “O Brasil não tem como afirmar neste momento que as pressões vêm do lado peruano, nem quais são elas”, disse, complementando com a informação de que do lado brasileiro a área é monitorada, o que torna menos provável que a ação contra os índios tenha partido daqui.
A Survival International, no entanto, destaca que os casos de índios isolados dizimados em território nacional são muitos, especialmente em áreas não demarcadas –o que não é o caso dessa região do Acre. A própria Funai confirma. Há algumas tribos isoladas que sobrevivem com um número baixíssimo de membros, como o “homem do buraco”, um solitário índio que vive na região de Tanaru, no estado de Rondônia, no norte do país, e rejeita qualquer tipo de contato. Em 2009, afirma a organização, ele foi violentamente perseguido por atiradores. Acredita-se que os outros membros da sua aldeia tenham sido vítimas de um massacre. Para os antropólogos que estudam esses grupos, muitas dessas tribos isoladas já tiveram, no passado, algum contato traumático com brancos, por isso escolheram se distanciar completamente.
“A dinâmica desses povos isolados está sendo mudada em função dessa pressão territorial. Estamos lidando com relatos de massacres”, diz a Funai
A Survival criou uma petição online que pede ações por parte dos Governos do Peru e do Brasil para ajudar os índios do Xinane. “O mais importante é a proteção de suas terras para que possam viver da forma que queiram e tenham a liberdade de decidir que tipo de vida querem e se querem estabelecer contato”, afirmou ao EL PAÍS Laura de Luis, a porta-voz da organização.
Os índios isolados parecem já ter começado a esboçar suas escolhas. O número dos que já deixaram a mata em busca de ajuda aumentou para 24, segundo a Funai. Todos estão bem de saúde, inclusive os sete primeiros, que já se curaram da gripe após receberem medicação. Eles a aceitaram, depois que intérpretes – índios jaminauás, levados para a área de helicóptero e que falam uma língua do mesmo tronco linguístico, o pano - explicaram a necessidade.
Todos fizeram exames de sangue, para se avaliar se são imunes a algum tipo de doença e receberam algumas vacinas. Uma equipe médica emergencial os acompanha, e tem à disposição helicópteros, para driblar a distância de seis dias de barco até o serviço de saúde mais próximo. “Estamos lidando com uma situação emergencial. Ou nós, de fato, fazemos uma intervenção competente, qualificada, ou estaremos repetindo as histórias de contato, onde a mortandade dos grupos indígenas foi muito alta”, desabafou o coordenador da Funai, na audiência no Senado, convocada pelo senador Jorge Viana (PT), que, após o contato, conseguiu o apoio do Governo para implementar um projeto que aumentará as verbas para a proteção desses índios. O órgão trabalha com a possibilidade de que o grupo aumente para 60 nos próximos dias.
Os que já chegaram estão alojados em uma base da Funai, que estava desativada. Caso decidam por fazer do contato algo permanente, poderão montar uma aldeia perto dali. Na região de 650.000 hectares já demarcada poderão viver em maior segurança. Só não se sabe em qual situação de saúde.
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