A revogação de portaria sobre aborto desperta o temor da pressão evangélica
Ao suspender a medida, que incluía o atendimento de vítimas de estupro em hospitais públicos, o Governo é acusado por feministas de ter tomado decisão eleitoreira
Uma semana depois de o Governo aprovar uma portaria que regulamentava a forma como o aborto legal é pago pelo Sistema Único de Saúde (SUS) do Brasil e que de acordo com feministas melhoraria a forma como as mulheres seriam atendidas nos hospitais públicos, o Ministério da Saúde revogou a decisão.
A medida, aprovada na quinta-feira da semana passada, determinava que o Governo pagasse 443,30 reais por cirurgia aos hospitais que realizassem o procedimento que, de acordo com a lei, só é permitido para mulheres vítimas de estupro, em uma gravidez de risco ou em casos de o feto sofrer de anencefalia. Também garantia o direito de um acompanhante no momento da realização do procedimento e especificava a forma como o aborto legal era classificado nas estatísticas de saúde (o CID, Classificação Internacional de doenças): seria "aborto por razões médicas e legais", algo que facilitaria as estatísticas de aborto.
Porém, nesta quinta-feira, dia 29, o Ministério da Saúde revogou a decisão sem apresentar justificativa. “Atribuímos essa medida puramente à pressão de partidos ligados às religiões, especialmente à bancada evangélica”, disse Paula Viana, coordenadora do Grupo feminista Curumim e integrante da Frente Nacional Contra a Criminalização de Mulheres e pela Legalização do Aborto.
A revogação teve influência direta do líder do PMDB na Câmara, deputado Eduardo Cunha, evangélico e que se auto-intitula “defensor da vida e da família”. Ele divulgou em sua página na internet que, na quarta-feira 27, havia alertado o ministro da Saúde que estava entrando com um projeto para revogar a decisão do Ministério. “Alertei a ele [o ministro] que pelos termos da portaria ela estaria legalizando o aborto ilegal”, escreveu. Segundo Cunha, nesta quinta-feira 28, o ministro foi procurá-lo para comunicar que a portaria editada por uma secretaria do Ministério continha falhas. “Logo resolveu revogá-la para melhor estudá-la”.
Procurado pelo EL PAÍS, o Ministério da Saúde não respondeu aos questionamentos da reportagem. Uma das perguntas que não foi respondida era sobre a influência dos deputados na decisão do ministro Arthur Chioro em voltar atrás na validação do aborto legal. Em uma breve nota, o Ministério se limitou a informar que decidiu revogar as portarias porque “constatou falhas técnicas nas regras para o pagamento do aborto legal”, e que “as regras que tratam do assunto estão com erros de pactuação entre o Ministério e os gestores locais do SUS (Sistema Único de Saúde)”. Esses erros, porém, não foram detalhados.
Um levantamento feito em julho do ano passado pelo Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), uma das instituições mais atuantes junto a parlamentares do Congresso, aponta que de 34 proposições que tramitavam naquele momento na casa com o tema “aborto”, 31 propunham “retrocessos graves” na legislação. Entre elas, constam leis que querem transformar o aborto em crime hediondo, o Estatuto do Nascituro, que dá direitos ao feto e transforma o aborto em delito culposo (quando há intenção para o crime e torna as penas mais duras) até outro que prevê penas para quem induzir a gestante ao aborto com informações sobre a interrupção da gravidez. Depois de julho, foram propostas outras três, duas delas de autoria de Eduardo Cunha.
Cunha é da igreja evangélica Sara Nossa Terra e um dos líderes da ala rebelde do PMDB. Apesar de o partido apoiar oficialmente o Governo de Rousseff, um grupo capitaneado por Cunha tem votado contra a gestão dela em uma briga principalmente por cargos. “O fato de estarmos em um ano eleitoral influencia diretamente nessa revogação”, diz Viana. “Há uma capilaridade muito grande dos conservadores nos Três Poderes, que põem a mulher como moeda de troca”, diz. Segundo Viana, um dos grandes prejuízos dessa revogação é que a portaria incluía o atendimento multidisciplinar da mulher que sofreu violência ou abuso sexual, uma atenção essencial, reforça ela.
De acordo com os argumentos de Cunha, a portaria “não coloca rígidos os requisitos de comprovação de que o procedimento é decorrente de estupro, forma prevista na legislação atual. “Desse modo, o Ministério da Saúde vai permitir que se pratique o aborto ilegal sob pretexto de uma Portaria que sequer exige o registro da ocorrência policial comprovando a prática da violência”.
De acordo com um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) realizado em 2011, cerca de 7% dos casos de violência sexual resultaram em gravidez naquele ano. Dessas mulheres, 67,4% não tiveram acesso ao serviço de aborto legal. Estima-se que apenas no ano passado, 850.000 mulheres tenham passado por um aborto, segundo um levantamento feito a pedido do EL PAÍS pelo o professor aposentado da UERJ Mario Giani Monteiro, o mesmo que em 2005 realizou um estudo a pedido do Ministério da Saúde e chegou a uma cifra de um milhão de abortos naquele ano.
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