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Feministas pedem que Dilma não ceda mais às pressões religiosas contra o aborto

Só no ano passado, penúltimo do Governo da primeira presidenta do Brasil, 850.000 interrupções de gravidez foram feitas no país, que se tornou refém de parlamentares fundamentalistas

Participantes da Marcha das Vadias, no ano passado em Copacabana.
Participantes da Marcha das Vadias, no ano passado em Copacabana.Pilar Olivares (REUTERS)

Ele não é um ginecologista normal, pois os ginecologistas normais, para consultas normais, mulheres não costumam ir com seus parceiros. E a sala de espera está cheia deles. Namorados nervosos grudados às mãos de garotas jovens, homens tranquilos que fazem piadas para tentar descontrair, parceiros que usam o WhatsApp em silêncio. Da televisão, um programa de variedades grita em alto volume. As mulheres entram e saem em bom ritmo. Em um intervalo de cerca de uma hora, as que estão ali vão ter: entrado numa sala, passado por uma consulta de 300 reais, trocado suas roupas por um avental, deitado em uma maca, adormecido pela ação do anestésico propofol (o mesmo que usado em excesso pelo cantor Michael Jackson colaborou para sua morte em 2009), passado por uma aspiração ou uma curetagem para a retirada do feto, acordado e saído pela porta do consultório, sentindo apenas uma leve indisposição física –e, na maioria dos casos, alívio.

A clandestinidade se percebe nos detalhes: o circuito de câmeras que aponta para a porta do consultório, os namorados na sala de espera, o teto estragado do banheiro que tem pequenas manchas de sangue no chão, a grande quantidade de dinheiro em notas - a consulta é paga de maneira oficial, com cartão, mas a outra parte se cobra em efetivo, à vista, pouco antes da intervenção -, a falta de higiene. Uma europeia que passou por um aborto na Espanha e outro no Brasil recorda de seu choque quando deram a ela um avental usado com manchas de batom e quando o médico entrou na sala de operação falando em seu celular.

Estima-se que apenas no ano passado, 850.000 mulheres tenham passado por um aborto, segundo um levantamento feito a pedido do EL PAÍS pelo o professor aposentado da UERJ Mario Giani Monteiro, o mesmo que em 2005 realizou um estudo a pedido do Ministério da Saúde e chegou a uma cifra de um milhão de abortos naquele ano. A grosso modo, 2.328 abortos foram feitos em cada um dos 365 dias de 2013. Ainda que o Brasil restrinja os abortos legais aos casos de estupro, grave perigo para a mãe e anencefalia do feto, clínicas como essas são algo que todos sabem que existe: qualquer amiga e muitos ginecologistas têm um nome, um telefone, alguns conselhos. Quase todos os caminhos levam ao médico mencionado anteriormente, um dos de maior reputação em São Paulo, que há mais de três décadas atende consultas ginecológicas e também interrompe gestações.

Longe desta clínica central, cravada em um prédio de escritórios repleto de fisioterapeutas e advogados, em alguma região periférica dezenas de mulheres que não têm 3.000 reais disponíveis também estarão interrompendo uma gravidez. Algumas, introduzindo comprimidos de Cytotec, talvez falsificados, na vagina, ou usando agulhas de tricô e sondas infectadas na esperança de que o corpo expulse o feto. Outras, recorrendo a alguma clínica que funciona em um fundo de quintal, com alguém que, possivelmente, nunca passou perto de uma faculdade de medicina e fará o procedimento sem a mínima higiene ou cuidado. Todas correrão o risco de sofrer hemorragia, perder o útero ou, até, a própria vida –o aborto é a quinta causa de mortalidade materna no Brasil; a cada dois dias, uma mulher morre após ter tentado interromper uma gravidez de forma insegura no país.

Quase 200.000 das 850.000 mulheres que abortaram em 2013 procuraram algum hospital do Sistema Único de Saúde (SUS) para realizar uma curetagem, seja porque passavam por um aborto natural, para realizar o procedimento amparadas pela lei, ou após um aborto clandestino malsucedido. É um número expressivo, ainda mais se comparado com as internações causadas por doenças como câncer (243.709) ou pelas que afetam o sistema respiratório (236.940), por exemplo. Apesar de todos esses dados, bastante conhecidos pelo Governo, o caso continua não sendo tratado como um problema de saúde pública. Nem durante a primeira presidência feminina do país, que tem a frente Dilma Rousseff (PT), que em 2007, quando era ministra-chefe da Casa Civil, afirmou publicamente que era um "absurdo" que o país ainda não tivesse descriminalizado o aborto.

Após esses primeiro quatro anos de governo, que chegam ao fim neste ano, a avaliação dos movimentos feministas é que a presidenta tornou-se refém de uma bancada de parlamentares considerados “fundamentalistas” que nos últimos anos tentam endurecer ainda mais a legislação já restrita que o país tem em relação ao aborto.

“Os movimentos feministas, neste momento, trabalham na retranca. Estamos tentando evitar que haja uma regressão no direito ao aborto no país”, desabafa Jolúzia Batista, socióloga e assessora parlamentar do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA), uma das instituições mais atuantes junto a parlamentares do Congresso.

Um levantamento feito pela instituição em julho do ano passado aponta que de 34 proposições que tramitavam naquele momento na casa com o tema “aborto”, 31 propunham “retrocessos graves” na legislação. Entre elas, constam leis que querem transformar o aborto em crime hediondo, o Estatuto do Nascituro, que dá direitos ao feto e transforma o aborto em delito culposo (quando há intenção para o crime e torna as penas mais duras) até outro que prevê penas para quem induzir a gestante ao aborto com informações sobre a interrupção da gravidez.

Depois de julho, foram propostas outras três, que pretendem restringir a profilaxia pra evitar que vítimas de aborto engravidem. Uma resposta à uma lei aprovada após um “cochilo” dos deputados anti-aborto, que regulamenta o atendimento de mulheres vítimas de estupro nos sistemas de saúde e obriga os hospitais a oferecerem a pílula do dia seguinte para todas elas –o mais próximo que o Governo Rousseff chegou do assunto nestes quatro anos.

A ofensiva contra o aborto tem crescido ano a ano no legislativo brasileiro devido, especialmente pela presença de legisladores evangélicos. A Frente Parlamentar Mista em Defesa da Vida – Contra o Aborto, refundada em 2011, contava em julho com 205 parlamentares empenhados em pensar leis anti-aborto.

Às vésperas das eleições presidenciais de outubro, Rousseff sofre um novo desgaste na Câmara. A recente troca de ministros desagradou o PMDB, principal partido da base governista e importante aliado eleitoral da presidenta. O líder do PMDB é Eduardo Cunha, que propôs duas das três legislações anti-aborto do final do semestre passado.

Esse cenário amedronta os defensores do aborto, que temem que diante da tensão pré-eleitoral, os deputados contrários à interrupção da gravidez usem o tema do aborto como mais uma barganha política. Para tentar conseguir mais votos nas eleições de outubro ou chantagear a presidenta, que sofreu acusações de ser “aborteira” no segundo turno das últimas eleições de 2010, os deputados do PMDB podem forçar a votação de algumas das proposições anti-aborto.

O baque sofrido por Rousseff durante a campanha de 2010 foi tão forte que ela se posicionou, contrariando discursos feitos anteriormente, desfavorável à qualquer mudança da legislação e se comprometeu a não tocar no tema durante os quatro anos de seu governo.

O EL PAÍS pediu uma entrevista sobre o assunto para as assessorias de imprensa de Rousseff, do Ministério da Saúde e da Secretaria de Políticas para as Mulheres. Ninguém quis falar.

O silêncio prometido pela presidenta em 2010 foi rigorosamente cumprido.

Cuidar de recém-nascidos: a pena para a mulher que aborta

Apesar de diretrizes dos conselhos de medicina que proíbem que médicos denunciem as mulheres que chegam aos hospitais com algum sinal de que tentaram fazer um aborto, ainda há profissionais que acionam a polícia, quando suspeitam disso.

São poucos os casos e geralmente envolvem mulheres pobres, que correm o risco de ficar atrás das grades por um período que varia de um a três anos, explica a defensora pública de São Paulo Juliana Belloque.

Para evitar a pena, as mulheres geralmente concordam com a suspensão do processo em troca de um período de prova. Por um período de dois a quatro anos, tem que cumprir com imposições do juiz, comparecer perante a um fórum e fazer trabalhos voluntários. “Para transformar o processo em uma lição de cunho moral, religioso, geralmente o juiz estabelece que ela deve prestar serviços comunitários em hospitais ou serviços que atendem aos recém-nascidos. Isso traz um sofrimento psicológico enorme para elas.

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