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Portugal anda por estradas vicinais

Duas vias no Algarve – uma autoestrada sem tráfego e uma velha rodovia congestionada – simbolizam a dificuldade do país em tirar proveito dos seus recursos

Antonio Jiménez Barca
Um caminhão-tanque circula sob um dos arcos de identificação para o pagamento de pedágio, na rodovia A -22.
Um caminhão-tanque circula sob um dos arcos de identificação para o pagamento de pedágio, na rodovia A -22.J. P. (EFE)

No outono europeu de 2011, o Governo português procurava múltiplas maneiras de enxugar a dívida, frear o déficit público e convencer a troika de que cumpriria o que foi exigido depois de pedir, meses antes, os 78 bilhões de euros (240 bilhões de reais) que livraram o país de uma bancarrota mais do que certa. Assim, em outubro daquele ano, em um discurso breve e solene transmitido pela televisão, o primeiro-ministro conservador Pedro Passos Coelho anunciava a primeira leva de cortes e ajustes que seriam encadeados sem trégua ao longo de três anos. Os portugueses começavam a entender o que significava isso de “viver troikado”. Nesse primeiro pronunciamento, Passos Coelho (que sempre deu a cara na hora de anunciar as más notícias) adiantou, entre outras coisas, que os funcionários públicos e pensionistas ficariam sem abono de verão, que vários impostos subiriam, que o IVA passaria de 13% para 23% em quase tudo, que determinadas consultas médicas passariam a ser pagas a partir de janeiro seguinte, inclusive as de urgência, e que várias rodovias passariam em dezembro a ter cobrança de pedágio.

Naquele dia, ninguém prestou muita atenção à questão das estradas.

Resgate bilionário

Portugal pediu em 2011 um resgate de 78 bilhões de euros (240 bilhões de reais) para evitar a bancarrota. Em outubro daquele ano, o Governo anunciou a primeira bateria de cortes, incluído o fim da gratuidade das autoestradas.

O país carece de meios suficientes para manter seus próprios investimentos. Os jovens bem formados optam por emigrarem para a África lusófona em busca do futuro que Europa lhes nega.

Mas chegou dezembro e, efetivamente, essas modernas vias de comunicação, com três faixas em cada sentido, a maioria inaugurada menos de uma década antes graças aos recursos europeus, deixaram de ser gratuitas. Tinham um nome meio obscuro, SCUT, sigla que significa “sem custo para o utilizador”, o que, evidentemente, deixava de fazer sentido. Entre essas autoestradas estava a A-22, conhecida como Via do Infante, que tem mais de 100 quilômetros e corre paralela ao litoral sul de Portugal, no Algarve, de Bensafrim até a fronteira com a localidade espanhola de Ayamonte, passando pelas localidades de Portimão e Faro. Os operadores turísticos clamaram contra a medida, temerosos da sua ruína, e usuários da estrada e comerciantes da região anunciaram protestos. Efetivamente, houve manifestações e interrupções viárias, e alguns arcos de cobrança de pedágio foram inutilizados a tiros de escopeta de caça, disparados de um carro, numa espécie de terrorismo motorizado noturno antipedágio. Mas a decisão do Governo prevaleceu, e a autoestrada continuou sendo paga, para melhorar a arrecadação da Fazenda portuguesa.

“Foi em 8 de dezembro de 2011, lembro-me perfeitamente da data”, diz Víctor Carvalho, garçom em um restaurante da estrada. “De repente, todos voltamos para a estrada velha. Para mim, utilizar a autoestrada implicava cinco euros por dia, coisa que não estava disposto a pagar. A estrada de sempre se tornou muito perigosa, e assim continua”.

O tráfego na autoestrada caiu pela metade, e o turismo se ressentiu em ambos os lados da fronteira. Na parte portuguesa, os prejuízos são calculados em 30 milhões de euros (92,5 milhões de reais) por ano, e no lado espanhol foi registrada uma redução de 25% da atividade econômica, segundo dados de um fórum da Comissão de Utentes da Via do Infante, com o apoio e a colaboração da prefeitura de Loulé.

Paralela a essa autoestrada corre a velha rodovia nacional EM-125, aquela à qual se refere o garçom Carvalho. Com duas faixas por sentido, acostamento em desnível e acessos um tanto desconcertantes, constitui a típica via que liga localidades costeiras, serpenteando entre propriedades agrícolas e oficinas mecânicas – e que havia tido o movimento bastante aliviado desde a inauguração da jovem autoestrada.

Agora, e desde então, ela acumula filas, cruzamentos perigosos e caminhões que arrastam rosários de carros atrás de si. Atravessá-la é perigoso. Circular por ela, também. Há nos acostamentos vendedores de (soberbas) laranjas a 3 euros (9,25 reais) o saco, ciclistas imprudentes que circulam ao lado de quilômetros caminhões de gasolina, caçambas de lixo dos imóveis próximos que aguardam o caminhão de coleta de cada dia, restaurantes de estrada e lava-rápidos, há tratores… e pedestres suicidas, que a atravessam correndo.

O motorista que passa por lá é tomado pela impressão de voltar no tempo, de circular nos anos setenta

O motorista que passa por lá é tomado pela triste impressão de recuar no tempo, de circular pelos anos setenta, de sentir como um país inteiro retrocede. De outra maneira: como o Portugal encolhe, retrocede e, de repente, carece dos meios suficientes, entre outras coisas, para manter seus próprios investimentos, para que funcione seu próprio motor.

Enquanto isso, a autoestrada moderna e vazia que se estende poucos quilômetros ao norte se torna repentinamente cara demais e boa demais para o país que a construiu, mas que é incapaz de desfrutá-la. Uma espécie de símbolo de Portugal, onde jovens bem formados (engenheiros, arquitetos e médicos) saem do país com destino a Angola, Brasil ou Moçambique, atrás de um futuro que desapareceu da Europa. O caso lembra o episódio engraçado (mas também simbólico) de uma ambulância ultramoderna de um hospital da localidade de Torres Vedras, a 40 quilômetros de Lisboa, que em setembro de 2012 foi parar nas páginas dos jornais devido ao fato de não poder sair da garagem por carecer de orçamento para médicos especialistas que prestassem seus serviços dentro do veículo. Boa demais para poder ser usada. Cara demais para um país decrescente.

No próximo 17 de maio, presumivelmente, a troika sairá de Portugal depois de três anos de ajustes crescentes e continuados que afetaram, sobretudo, os salários dos funcionários públicos, os gastos governamentais e os pagamentos aos aposentados. Os dados macroeconômicos parecem ter se ajustado nos últimos meses: Portugal cumpriu no ano passado o compromisso de déficit (5% do PIB), à base de torcer o pescoço do orçamento, e tudo indica que este ano também o fará, alcançando os 4% prometidos para a Europa. Mas o desemprego não baixa de 15%, e vive-se pior do que em 2011, sem que, no momento, se veja uma mudança na tendência.

Por Boliqueme, uma localidade do Algarve, passa a congestionada e sobrecarregada rodovia E-125. Por uma das ruas do povoado avança um homem levando um cavalo pardo e pequeno pela rédea. Perto dali, num bar, senta-se ao balcão o motorista Aurelio Gonçalves, de 53 anos, que já não usa a autoestrada nova por ser cara demais, que já não trabalha como taxista por falta de negócios e de turistas, e que está adorando falar com um jornalista para poder protestar como convém: “Daqui, deste aldeia é o presidente da República, Aníbal Cavaco Silva. Esse aí” – diz, apontando um homem de 60 anos que toma um café – “trabalhou para o seu pai, que geria um posto de gasolina”. E depois acrescenta: “Ainda me lembro de quando veio inaugurar, como primeiro-ministro, a autoestrada nova. Com gente da União Europeia”.

E depois, olhando amargamente para o velho que trabalhou para o pai de Cavaco, diz: “O pior é que agora vem aqui a polícia a multar. E, se passas dos 50 quilômetros por hora, lhe tocam 120 euros [370 reais]. Claro, eles vêm aqui porque na autoestrada não apanham ninguém, porque ninguém vai lá. Nem eles”.

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