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Um embrião generoso

Os cientistas conseguem obter células-tronco sem afetar o desenvolvimento do óvulo fecundado Para evitar rejeições imunológicas nos transplantes, está sendo proposta a criação de um banco de linhagens celulares que cubra a variedade genética

Javier Sampedro
Testes no centro de Medicina Regenerativa de Barcelona, onde se trabalha com células-tronco.
Testes no centro de Medicina Regenerativa de Barcelona, onde se trabalha com células-tronco.GIANLUCA BATTISTA

As primeiras células-tronco descobertas, e ainda as de melhor qualidade para experimentos, requerem a destruição de um embrião humano. Esta é a razão da forte oposição ética e religiosa provocada por essas células nos últimos 15 anos, e também de que continue sendo ilegal consegui-las em países como os Estados Unidos, ou ao menos nos institutos públicos norte-americanos. Cientistas do Instituto Karolinska, de Estocolmo, fizeram uma descoberta que derruba de uma só vez todos esses problemas: utilizam apenas uma célula das oito de um embrião novo, para obterem os cultivos de células-tronco; e o embrião não é destruído, porque as outras sete são suficientes para que ele se desenvolva e inclusive (em teoria) para que seja implantando em uma mulher caso seja necessário.

A técnica é simples e eficaz, e devolve as células-tronco ao primeiro plano da investigação biomédica, depois de cinco anos em que sua principal alternativa—as células-tronco iPS, obtidas com o atraso do relógio de células simples da pele — parecia estar à frente. Os cientistas suecos propõem a criação de bancos de células-tronco embrionárias para cobrir as necessidades futuras de compatibilidade imunológica com os pacientes. O método foi publicado na última segunda-feira na Nature Communications.

Nos Estados Unidos é ilegal obter estas células em centros públicos

A ideia de utilizar uma das oito células de um embrião não é totalmente nova. Robert Lanza, um dos líderes mundiais em clonagem humana, já a havia testado em 2006, e houve outras tentativas depois disso, mas nenhuma delas teve continuidade. O que os cientistas de Estocolmo conseguiram é uma série de descobertas metodológicas que transformaram essa ideia em uma técnica não apenas viável, mas também altamente eficaz. A descoberta baseia-se na utilização de duas moléculas (laminina e cadherina) que normalmente têm um papel essencial na aderência das células aos seus substratos fisiológicos. Essas propriedades são aproveitadas para utilizá-las em um meio de cultivo laboratorial.

As células-tronco embrionárias têm sido obtidas a partir de embriões que sobram de tratamentos de fecundação in vitro, que em alguns países, entre eles a Espanha, podem ser doados pelos pais para fins de pesquisa. Os embriões, na fase de blastocisto (de cerca de duas semanas de formação e antes de sua implantação em um útero), acabam sendo destruídos no processo de extração das células. Os Institutos Nacionais de Saúde (NIH) norte-americanos, que representam os maiores centros de pesquisa biomédica do mundo, são proibidos de usarem verbas públicas para essas tecnologias, embora possam usar linhagens celulares já estabelecidas em certas condições.

Kart Tryggvason e seus colegas do Instituto Karolinska, de Estocolmo, e da Faculdade de Medicina Duke-NUS, de Cingapura, se inspiraram em um método que já vem sendo usado há alguns anos para um propósito totalmente distinto: o diagnóstico prévio à implantação. Quando um casal é portador de doenças hereditárias, os cientistas deixam vários embriões se desenvolverem até que tenham oito células, extraem uma para a análise genética e, se estiver livre de defeitos hereditários, utilizam o embrião correspondente (ou seja, as sete células restantes) para implantá-lo na mulher. No novo método sueco, a célula extraída é usada para estabelecer uma linhagem de células-tronco embrionárias, e as outras sete fazem o mesmo que antes: regenerar o embrião completo e viável.

Os resultados pressupõem um estímulo às células-tronco embrionárias frente às suas principais concorrentes, as células iPS, que foram desenvolvidas na década passada como uma alternativa “ética” à destruição de embriões, e que há dois anos deram o prêmio Nobel ao seu inventor, o japonês Shinya Yamanaka.

“Penso que as iPS são de interesse para testar medicamentos”, diz Tryggvason

“Penso que as células iPS são de grande interesse para estudar os mecanismos da doença e como modelos para testar novos medicamentos, sempre que tenham sido obtidas a partir de pacientes com doenças genéticas; mas muitos cientistas, entre os quais me incluo, são céticos quanto ao seu uso para a terapia celular (para implantá-las em pacientes), já que estão modificadas geneticamente”, disse Tryggvason, líder da equipe do Instituto Karolinska, em entrevista ao EL PAÍS.

A geração de células-tronco iPS a partir de simples células da pele de um paciente implica, segundo as tecnologias atuais, a introdução de três ou quatro genes reguladores — genes que regulam outros genes —, que são os que atrasam o relógio das células adultas do paciente para devolvê-las ao seu estado original de células-tronco. Isso exige o uso de vírus e de outros fatores que complicam sua aplicação clínica. “Será mais fácil que as autoridades reguladoras aceitem este método de obtenção de células-tronco embrionárias”, acredita Tryggvason.

Outro assunto essencial para o futuro uso clínico da terapia celular é o da compatibilidade do material implantado com o genoma do paciente, para evitar a rejeição imunológica que pode arruinar qualquer transplante. Com as células iPS, esse problema seria resolvido de maneira automática — pois teriam sido obtidas de células do próprio paciente e, portanto, seu genoma seria idêntico —, mas isso não acontece com as células-tronco embrionárias obtidas a partir do material que sobra das fecundações in vitro.

Os cientistas basearam-se nas técnicas de pré-implantação

A ideia da equipe de Estocolmo é construir um banco de linhagens celulares embrionárias que cubra razoavelmente a variabilidade humana em termos de compatibilidade genética. Mas que tamanho precisaria ter esse banco? “É provável”, responde Tryggvason, “que 150 ou 200 linhagens celulares que representem diferentes antígenos teciduais (as moléculas na superfície das células que interagem com o sistema imunológico do receptor) sejam suficientes para cobrir a maior parte da população humana; não sabemos o número exato de linhagens que precisamos, mas seria relativamente fácil gerar linhagens adicionais se aquelas não forem suficientes”.

O pesquisador de Estocolmo acrescenta: “Se construirmos um banco celular onde estejam representados virtualmente todos os tipos de antígenos, então qualquer paciente poderá em princípio conseguir material para as terapias celulares que necessitar a partir da linhagem particular que case com suas características imunológicas”.

A chave para a técnica de Estocolmo são duas proteínas humanas que normalmente estão presentes nos nichos das células-tronco, os lugares fisiológicos que permitem a renovação dessas células imaturas no corpo. Chamam-se laminina LN-521 e e-cadherina, e ambas cumprem funções naturais cruciais para a organização no espaço das células humanas. Os cientistas demonstraram que a combinação dessas duas proteínas na matriz de cultivo resulta em uma alta taxa de propagação clonal da única célula originalmente extraída do embrião. Não é preciso utilizar células de outras espécies para sustentar essa proliferação, como era o caso com as metodologias anteriores. Esse é um aspecto muito importante para seu uso na prática clínica, pois esses outros materiais conduzem frequentemente a contaminações nefastas.

As linhagens estabelecidas de células-tronco podem, durante o cultivo, sofrer mutações e alterações de genoma – como mudanças no número de cromossomos – que as tornam indesejáveis para sua aplicação clínica. Outra vantagem dos métodos desenvolvidos em Estocolmo é que eles reduzem drasticamente essa instabilidade genética. O risco de mutações cancerosas é um dos principais problemas que será preciso resolver antes que as células-tronco alcancem aplicações em pacientes. Os cientistas esperam continuar melhorando as condições de cultivo até reduzir ao mínimo esses riscos. Serão trabalhos sem muito brilho conceitual, mas fundamentais para o futuro próximo da medicina regenerativa.

Avançando em paralelo

Se tem uma coisa que a ainda curta história das células-tronco e a incipiente medicina regenerativa demonstram é a conveniência de manter uma mente aberta e desenvolver em paralelo as várias estratégias promissoras que foram surgindo nos laboratórios de meio mundo. A maioria dos cientistas está muito consciente da necessidade desses avanços em paralelo. A invenção das células-tronco iPS, por exemplo, nunca representou um argumento para abandonar a pesquisa com material embrionário. De fato, inclusive os grupos de pesquisa associados ao prêmio Nobel Shinya Yamanaka – o descobridor das iPS –estiveram os últimos cinco anos trabalhando concomitantemente com essas células e com as derivadas de embriões. Cada novo trabalho não faz senão ressaltar o acerto dessa estratégia.

Ninguém dúvida que as células iPS, ou algum sistema similar que se desenvolva no futuro, serão um dia a metodologia ideal para a prática clínica. Poder reparar o coração, o cérebro ou o fígado de um paciente partindo de algumas quantas células da sua pele ou do seu cabelo seria o sonho de qualquer pesquisador do setor, e certamente também de qualquer paciente. Mas, enquanto esse futuro perfeito não chega, é provável que as primeiras aplicações que vejamos nos próximos anos estejam amparadas nas células-tronco embrionárias. E uma terapia eficaz também será muito útil para eliminar questionamentos éticos.

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