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Análise
Exposição educativa de ideias, suposições ou hipóteses, baseada em fatos comprovados (que não precisam ser estritamente atualidades) referidos no texto. Se excluem os juízos de valor e o texto se aproxima a um artigo de opinião, sem julgar ou fazer previsões, simplesmente formulando hipóteses, dando explicações justificadas e reunindo vários dados

Sudão do Sul enfrenta sua terceira guerra civil em 50 anos

A independência do país mais jovem do mundo despertou conflitos étnicos negligenciados, mas jamais esquecidos

Homem da tribo dinka, com um rifle AK-47 no Sudão do Sul.
Homem da tribo dinka, com um rifle AK-47 no Sudão do Sul.GORAN TOMASEVIC (REUTERS)

“No Sudão do Sul não há povos. As tukuls, cabanas familiares, estão o mais longe possível umas das outras, com frequência há mais de uma hora a pé entre si”, comenta uma servidora pública da União Europeia que trabalha em Yuba. “Durante a última guerra civil, viver em comunidade significava ser atacado uma vez ou outra pelos grupos armados, o que fez com que as pessoas decidissem viver o mais afastado possível uma das outras para poder sobreviver”. A guerra civil que assolou o Sudão do Sul entre 1983 e 2005 — foi a segunda, já que houve uma inicial de 1955 a 1972— marcou a vida cotidiana do país mais jovem da comunidade internacional. Desde que a violência se desatou, no último dia 16, 250.000 pessoas têm levantado acampamento, na tentativa de evitar as diferentes facções que lutam entre si.

O Sudão do Sul obteve a independência do Sudão em junho de 2011 entre a euforia de seus oito milhões de habitantes esgotados depois de 22 anos de conflito, dois milhões de mortos e quase um milhão de refugiados e deslocados. A nova nação é rica em petróleo e tem uma das terras mais férteis da África, mas é tão subdesenvolvida que mal conta com 60 quilômetros de estradas asfaltadas e não tem rede elétrica. Mais de 70 % de seus cidadãos têm menos de 30 anos, o que significa que só conheceram a guerra, e menos de um quarto da população sabe ler e escrever. Um caldo de cultura perigoso para começar uma nova caminhada que, nos últimos dois anos e meio, tem topado com um antigo baque: a falta de visão conjunta das mais de 60 etnias que vivem em seu território e o recurso à violência como primeira opção.

A guerra civil dos anos oitenta e noventa, com frequência erroneamente simplificada como uma luta entre norte e sul, foi uma carnificina entre os múltiplos grupos étnicos da região —dinka, nuer, murle, shilluck e as dúzias de tribos da região equatorial— que lutavam para obter suas cotas de poder político e social no futuro estado. As lutas internas causaram mais mortos e destruição que o conflito contra Jartum em si. Mais ainda, foi unicamente a existência do inimigo comum, o Sudão, o que conseguiu que temporariamente estacionassem suas diferenças e fossem juntos às negociações de paz que terminaram com um referendo de secessão.

As brigas entre tribos foram varridas para baixo do tapete e as tentativas de reconciliação nacional nunca frutificaram. Os líderes militares durante a guerra passaram sem transição a ser as figuras políticas do novo país. Homens como Salva Kiir, Riek Machar e Lam Akol, que já nos anos noventa foram responsáveis pelas sangrentas rixas internas no movimento rebelde contra o Sudão, se encontraram de novo no Executivo e no parlamento administrando um país. Cada decisão, desde a partilha de ministérios até a decisão de onde se construiria um hospital rural, era feita através do prisma étnico, intensificando sentimentos de queixas e de marginalização. Se um candidato da etnia murle não obtinha uma cadeira em umas eleições, o achacaba, em uma conspiração política contra sua tribo, rapidamente conseguia apoio para iniciar uma rebelião. Uma disputa por pastos para o gado em âmbito local se convertia rapidamente em uma disputa nacional. O que é um país com estruturas mais sólidas poderia ser resolvido pela via judicial, no Sudão do Sul se resolve através das armas.

A maioria das etnias têm visto que os dinka, o grupo maioritário, foi monopolizando, pouco a pouco, o poder. O presidente Salva Kiir, um dinka, confirmava estes temores dando passos cada vez menos dissimulados para eliminar qualquer futura concorrência política, inclusive dentro de seu próprio partido. A gota d'água que transbordou o copo foi a expulsão do Governo, em junho passado, do segundo homem forte do país, o vice-presidente Riek Machar (da etnia nuer) que comunicava publicamente suas intenções de ser candidato presidencial em 2015. Kiir, que levava meses sabotando qualquer iniciativa de Machar dentro do Executivo, se camuflou como uma reorganização de seu Gabinete que ninguém creditava. Poucos esperavam, dados os antecedentes do Sudão do Sul, que Machar esperasse dois anos para dar o troco nas urnas. Para Boutros Biel, um advogado local que trabalha com assuntos de direitos humanos em Yuba, “no momento em que o sentimento de marginalização política de um grupo atinja seu limite e pegue as armas, provocará um efeito dominó. Todas as demais etnias vão voltar a se reagrupar e se preparar para o pior", explicou, há mais ou menos um mês.

O aparecimento televisionado do presidente acusando Machar de promover um golpe de estado foi a dinamite. Em poucos dias, as mesmas dinâmicas da guerra civil foram ativadas novamente e as facções armadas —não só os nuer, também os murle de Jonglei e os shilluk nas ribeiras do Nilo— voltaram a se alinhar de acordo com sua identidade étnica, dispostas a retomar o “todos contra todos” prévio aos acordos de paz de 2005. Os mortos superam já o milhar e crescem os rumores de matanças étnicas. A vontade de negociar de Kiir chega tarde e provavelmente não consiga aplacar seus rivais que já viram em primeira mão que, em época de paz, o presidente se comporta como durante a guerra: sem ceder um ápice de poder.

Iliana Mier-Lavin é investigadora sobre conflitos na Universidade da Colúmbia.

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