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Uma fissura entre os dois papas

O novo livro assinado por Bento XVI, no qual pressiona Francisco para abandonar a ideia de ordenar homens casados, põe em xeque a relação entre os pontífices

O papa emérito Bento XVI e o papa Francisco se cumprimentam no Vaticano, em uma imagem de novembro de 2016.
O papa emérito Bento XVI e o papa Francisco se cumprimentam no Vaticano, em uma imagem de novembro de 2016.MAURIX (GETTY)
Daniel Verdú

O Vaticano enfrenta uma nova e inesperada turbulência, desta vez vinda dos pacíficos jardins onde vive há quase sete anos Bento XVI, o primeiro papa a renunciar desde o século XV. Joseph Ratzinger anunciou então que não iria interferir na vida e no governo da Igreja. Mas, nos últimos meses, interrompeu o silêncio duas vezes, mudando o ritmo da trajetória do atual papado. A última em um livro que será publicado nesta quarta-feira, supostamente escrito em parceria com o cardeal Robert Sarah, da Guiné —o favorito da extrema direita no próximo conclave—, no qual se opõe frontalmente ao celibato opcional e, acima de tudo, à ordenação de homens casados, como antecipou Le Figaro no domingo. O problema, no entanto, não é a questão em si, mas a ingerência nada inocente em um assunto tão importante e sobre o qual Francisco deve decidir nas próximas semanas.

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O relacionamento entre dois homens que se vestem da mesma forma e moram a poucos metros de distância nem sempre é fácil. Nem um cantava Beatles quando se conheceram nem o outro deixava que lhe ensinassem tango, como mostra o filme Dois Papas, que está em cartaz. A realidade é que Jorge Bergoglio, 83, e Ratzinger, 92, mantêm uma comunicação impecável nas formas e que o primeiro pressionou com seus aliados para que o segundo fosse nomeado papa em 2005. Mas a coexistência ideológica e teológica está um pouco mais longe dessa melíflua melodia. Os opositores de Francisco tentaram usar Bento XVI, desde que se aposentou, como um símbolo da retidão teológica contra o que eles consideram uma traição à Igreja (o atual pontífice foi acusado de herege). E a publicação do livro, intitulado Do fundo de nossos corações, que ele agora assina com Sarah —que na segunda-feira defendeu no Twitter que não é um texto contra Francisco— devolve vigor a essa bandeira de guerra.

O texto e o momento de sua publicação não são um acaso. O livro refere-se explicitamente ao sínodo sobre a Amazônia, ocorrido em outubro no Vaticano, e à controversa decisão votada pela assembleia dos bispos —aprovada com 128 membros a favor e 41 contra, mas com um quórum de 120— de colocar o papa para estudar a ordenação de homens casados ​​em alguns lugares remotos onde os fiéis não têm acesso aos sacramentos. Francisco deve decidir em breve se dá sua aprovação final na exortação apostólica que escreve, e o texto atribuído a Bento XVI só pode ser considerado como uma pressão sobre essa decisão.

Os defensores de Francisco lembram que Ratzinger tem uma saúde muito frágil que não lhe permite manter longas conversas e, muito menos, escrever. As conversas são sempre filtradas por duas ou três pessoas de seu entorno privado fora do controle da Santa Sé, e esse setor, com inclinações conservadoras, é apontado como responsável pelo enredo. Além disso, à última hora da segunda-feira, alguns meios de comunicação publicaram uma versão de pessoas do entorno de Ratzinger, segundo a qual o papa emérito não conheceria realmente o verdadeiro uso que seria feito do ensaio que escreveu meses atrás sobre o celibato nem a capa do livro onde sua assinatura aparece. Sarah postou logo depois no Twitter a correspondência com o papa emérito, o que supostamente provaria que ele sabia dos planos exatos de como o livro seria publicado e dava sua autorização para fazê-lo "como estava previsto".

Outras fontes consultadas que têm contato com Bento XVI garantem que ele conserva lucidez suficiente para não ser manipulado em um assunto desse tipo. “Do ponto de vista de suas capacidades, não há nenhuma dúvida de que sabe o que foi publicado. Está lúcido e caminha diariamente pelos jardins do Vaticano. Não é comparável aos últimos meses de João Paulo II. Outra coisa é que conheça a versão final do livro”, diz alguém com acesso a Ratzinger e que se refere a um contato de 15 dias atrás.

É a segunda vez, de fato, que um texto de Bento XVI questiona a ação deste pontificado. A última foi em abril do ano passado, quando o papa emérito questionou a perseguição recente de alguns padres acusados ​​de pedofilia, como lembra a historiador e especialista na Igreja Lucetta Scaraffia. “Quando Bento publicou aquelas páginas, não contou a ninguém e apareceram em um jornal da Baviera. Recordava suas instruções sobre os abusos e parecia criticar uma ação menos equilibrada e ponderada de Francisco. Por que agora? Ordenar homens casados é cancelar o celibato dos padres. Acho que o que mais incomoda Bento XVI é que o papa distorça pontos claros da tradição, fazendo exceções, em vez de discuti-los abertamente e em profundidade.”

O Vaticano, surpreso com a publicação, se pronunciou nesta segunda-feira por meio de Andrea Tornielli, seu diretor editorial. O veterano jornalista afirmou que o livro é uma contribuição “em obediência filial ao papa”. Mas, além disso, entrou no fundo da questão lembrando que o próprio Bento XVI também admitia exceções ao permitir que padres anglicanos casados ​​fizessem parte da Igreja Católica. Muitos pensam agora que, além de ocultar de modo inglório esse precedente, o texto de Ratzinger e Sarah é uma ofensa a todos eles, a quem o cardeal guineense descreve como “sacerdotes de segunda” pelo fato de serem casados. Um ponto de aparente não retorno que corre o risco de arruinar a relação histórica entre os dois papas.

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