_
_
_
_

A nova moda do Vale do Silício de abandonar o álcool, o sexo e as redes sociais para “reiniciar” o cérebro

Tentar melhorar o funcionamento do órgão mestre reduzindo prazeres potencialmente ‘viciantes’. Adianta alguma coisa?

Foto para matéria dopamina

O Vale do Silício é conhecido por seu papel como um polo mundial de desenvolvimento de tecnologia e pelos milhões de dólares gerados por seus gigantes digitais. Mas o paraíso geek por excelência também é o lugar onde emergem as tendências de saúde mais extravagantes, geralmente ligadas ao aumento da produtividade pessoal. Os executivos de São Francisco puseram na moda a dieta de jejum intermitente, a de beber água pura da chuva e fontes sem tratar, o consumo de microdoses de LSD para obter um melhor desempenho no trabalho... e agora chega a de nos afastarmos de tudo o que produz prazer –da comida, ao álcool e o sexo até as redes sociais e as novas tecnologias. A prática é conhecida como jejum de dopamina, termo cunhado pelo psicólogo e investidor em tecnologia Cameron Sepah, ao qual se atribuem os benefícios de “reiniciar” e melhorar a eficiência do cérebro. Ou seja, como uma maneira de nos livrarmos dos “vícios” que nos impedem de alcançar nossas mentes e potencializar a produtividade. Vale a pena tentar?

Contra o hormônio do desejo e da motivação

A dopamina é um neurotransmissor básico do sistema nervoso central e não é prejudicial, lembra a neurocientista Raquel Marín, professora de Fisiologia da Universidade de La Laguna, em Tenerife. O cérebro precisa dela para várias tarefas relacionadas à memória, à motivação, à recompensa, ao aprendizado, à atenção e aos estados de alerta. “Também está envolvido nas funções motoras, é estimulada quando nos apaixonamos e atua até mesmo na produção de prolactina, o hormônio da secreção de leite na mama”, diz Marín.

O fato de a dopamina ser liberada no cérebro quando sentimos algum tipo de satisfação ou bem-estar em atividades como ler um livro, sair com amigos, viajar ou praticar sexo fez com que durante muito tempo se acreditasse que essa molécula era a responsável pelo sentimento do prazer. Agora é conhecida como o neurotransmissor do desejo e da motivação. “Ao liberar dopamina, sentimos um enorme desejo de buscar prazer; quando o encontramos, as endorfinas ou encefalinas nos fazem senti-lo. O desejo nos faz procurar prazer, e o prazer também aumenta a vontade de procurar desejo”, explica Ignacio Morgado, professor de Psicobiologia no Instituto de Neurociências da Universidade Autônoma de Barcelona.

Mais informações
Estamos obcecados pela felicidade?
Você nunca vai agradar a todos. Saiba como não ligar para isso
La huelga nacional de trenes de Renfe dificultó ayer la salida de vacaciones de muchos  usuarios.
“A obsessão por ser feliz o tempo todo faz as pessoas se sentirem péssimas”

A dopamina também está ligada à surpresa; portanto, quanto mais inesperado for um evento, mais dopamina é liberada. “É como quando alguém está sentado tranquilamente em um café e de repente aparece um amigo que não via há muitos anos”, diz Morgado, autor do livro Deseo y Placer, la Ciencia de las Motivaciones (Editora Ariel, sem tradução). Então o que há de errado? Por que alguém iria querer bloquear sua produção?

Os vínculos com a dependência química e a depressão

A graça da proposta é que o jejum de dopamina se baseia na renúncia a comportamentos pouco saudáveis que envolvem abusar do prazer. Pode ser entendido como um tipo de estratégia para escapar de situações que distraem a atenção de outras mais produtivas, ou como uma "terapia de desintoxicação" daquilo que nos separa do que é realmente importante. No entanto, "o organismo a regula para que não seja escassa nem excessiva. É difícil conceber uma possível regulação para menos, por controlar voluntariamente aspectos relacionados com a produção de dopamina", explica Marín.

Para Morgado, existe uma maneira, embora não seja atraente: “Se você se tranca em casa, não recebe telefonemas e não assiste à TV, impede que seu cérebro libere dopamina de forma natural. Não sabemos em que circunstâncias o jejum deve ser aplicado nem como deveria ser, mas se volta para a vida cotidiana e nos chama a todos de abusadores da vida, como uma homilia de domingo”, enfatiza. A neurocientista é a favor da ideia do jejum, mas como meio de pesquisa em substâncias inibidoras para casos de dependência, quando a sobrecarga dos sistemas de recompensa deteriora o cérebro. “Não é um tratamento terapêutico para qualquer pessoa, reduzi-la só é bom em casos de excesso exacerbado de algo prejudicial para o organismo e que o impede de levar uma vida normal”, ressalta o professor.

Ocorre que a dopamina está ligada às dependências químicas, quando o cérebro pede a recompensa com insistência. Nesses casos, prega uma peça. “Produz uma sensação permanente de inquietação e desassossego na ausência do prêmio, assim como de atender a essa necessidade para subsistir, mesmo que estejamos conscientes de que é uma prática que nos prejudica”, diz Marín, que dá como exemplo o café matinal. “Nenhum estudo científico mostra que é essencial para sobreviver, no entanto, muitas pessoas sentem que não podem funcionar sem ele”, diz a neurocientista.

O diretor da seção de Neurociência Cognitiva do Centro de Evolução e Comportamento Humano da Universidade Complutense de Madri, Manuel Martín-Loeches, observa que “não há como restaurar algo que está em constante mudança desde antes do nascimento, como é o caso do cérebro. Se restringirmos a dopamina com o jejum, ocorrerá algo semelhante aos efeitos a longo prazo de um vício: falta de satisfação, que costuma levar à depressão”.

Paradoxalmente, só fato de se considerar essa opção também aumenta o nível dessa molécula. “Reduzir o horário de conexão com as redes sociais, eliminar o consumo de drogas ou mudar a dieta com diretrizes mais saudáveis ​​é altamente recomendado para uma melhor saúde do cérebro, maior concentração, um melhor senso de recompensa contra limites mais baixos de estímulos e um melhor senso de autoestima. Mas, por si só, a decisão de adotar esse pseudo jejum de dopaimna também estimula a produção de dopamina”, diz Marín, autor do livro Pon en Forma tu Cerebro (Editora Rock, sem tradução).

Mudar a cerveja da tarde por meia hora de academia

Os especialistas concordam em que, do ponto de vista neurocientífico, o jejum de dopamina é algo inimaginável. “São muitos os parâmetros fisiológicos e psíquicos que regulam sua produção”, afirma a neurocientista de modo taxativo. No entanto, o fato de o nível do neurotransmissor não poder ser controlado em muitas funções não impede a realização de ações conscientes para controlar as práticas que estimulam sua síntese. “Se pudermos reduzir a produção de dopamina nas áreas específicas do cérebro envolvidas nos vícios, é provável que nos sintamos mais capazes de controlar hábitos prejudiciais. Em algumas pesquisas em animais, já foi possível reduzir o desejo por doces”, lembra Marin.

O cientista propõe criar ambientes com menos estímulos à dopamina, como mudar a rotina diária da cerveja no fim do dia por meia hora de academia ou desligar os aparelhos eletrônicos durante o almoço. “As mudanças de contexto que envolvem a eliminação do uso de narcóticos beneficiam o cérebro a médio prazo, pela mesma razão que nos sentimos fisicamente melhor quando paramos de comer doces todos os dias”, ele insiste.

Mas a ideia de ter um desempenho melhor no trabalho graças ao jejum de dopamina é questionada pela relação positiva que existe entre a molécula, os estados de ânimo positivos e a criatividade. “Eles podem não ser adequados para determinadas tarefas, como a contabilidade, pois se cometem mais erros. Mas para a maioria das funções profissionais e pessoais, a dopamina seria muito recomendável”, diz Martin-Loeches. E em contextos mais românticos também, diz Marín: “Nem tudo é prejudicial na superprodução de dopamina. Também precisamos dela para nos apaixonarmos. Sem essa molécula maravilhosa, é muito provável que nunca sucumbiríamos ao amor”, conclui. E quem quer renunciar a esses deleites?

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo

¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?

Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.

¿Por qué estás viendo esto?

Flecha

Tu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.

Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.

En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.

Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_