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Coluna
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Da arte de aprender a cair

O desejo procura a queda porque ela é o impulso que temos para ser diferente de nós mesmos, diferente do que fomos até agora. Talvez seja por isso que entramos em relação

Vladimir Safatle
Competidor treina salto para o torneio Four Hills, na Áustria.
Competidor treina salto para o torneio Four Hills, na Áustria.RONALD WITTEK (EFE)

Eu sempre quis começar um texto perguntando-me por que livros de ética normalmente são tão ruins. Não falo apenas dos livros para grande público, normalmente repletos de descrições edificantes sobre virtudes que parecem feitas para animar palestras motivacionais de grandes empresas ou exortações morais que dificilmente escondem seu tom claramente redutor. Como se houvesse algo da ordem de palavras encantatórias que quanto mais repetidas mais teriam o dom de simplificar a existência e seus caminhos. Mesmo quando tais livros começam com um tom de ruptura e de rebeldia, é apenas para chegar a alguma digressão mágica sobre felicidade ou algum produto congênere da mesma família. Melhor seria se eles começassem por se perguntar por que a felicidade tornou-se historicamente, ao mesmo tempo, impossível e imoral para nós; por que ela deve começar por ser recusada se quisermos ainda permanecer fiel a seu impulso inicial. Parafraseando Kafka, dizer que há felicidade, mas não para nós, seria uma maneira de começar por lembrar que a verdadeira decisão ética aqui consiste em recusar qualquer compromisso com a permanência de uma situação histórica fundada na infelicidade de muitos.

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Mas, se voltarmos os olhos aos livros que circulam no mundo acadêmico na área que chamamos normalmente de “filosofia moral”, encontraremos uma terra devastada não muito distinta. Difícil não perceber como eles estão entre os mais esquemáticos. Alguém deveria começar por lembrar que não se fala de posições éticas sem definir as fronteiras de suas limitações históricas. Como se fosse possível falar de virtudes da mesma forma que Aristóteles, quando nem sequer fazia sentido a distinção entre as virtudes do cidadão (porque se trata de um problema de homens) e as virtudes privadas, já que o horizonte social de fundamentação da vida ética não era passível de questionamento. Ou melhor, só era questionado como ruína e catástrofe nos momentos mais dilacerantes do teatro, como vemos por exemplo em Antígona, de Sófocles.

Mas poderíamos continuar este estranhamento em relação ao apagamento da situação histórica de enunciação nos perguntando sobre o erro de falar de dever como na época de Kant, quando a crença na forma procedural e universalizante do julgamento ético podia ainda aparecer como um ganho de racionalidade em relação à vinculação local dos costumes e tradições, quando a exortação a agir por amor ao dever podia ainda ser um contraponto à consolidação da redução de nossas motivações para a ação ao quadro calculador da maximização dos interesses individuais. Não perceber que a história dessa crença na universalização foi também a história de uma desafecção catastrófica em relação a contextos, de uma abstração que trazia no seu bojo as marcas das piores violências seria, mais uma vez, tomar a filosofia pela arte da descrição de estrelas imaginárias, ou seja, descrição de entidades aparentemente imutáveis que existem apenas nos olhos de quem as descreve.

No fundo, todas essas estratégias, e elas são múltiplas, partilham ao menos um erro fundamental: o erro de acreditar que uma reflexão sobre ética seria a melhor forma de alimentar nosso desejo de invulnerabilidade e de inviolabilidade. A ética como uma forma, talvez a mais astuta, deste estranho desejo humano de inviolabilidade. Pois se soubéssemos nos orientar de forma segura na dimensão moral seríamos invioláveis, andaríamos em um solo firme, mesmo se nossas certezas morais produzissem continuamente equívocos e fracassos. Ou seja, a ética como a versão secularizada da procura por uma segurança ontológica. Por trás de suas questões do tipo “como quero ser?” ou "o que devo fazer?” haveria sempre este desejo por um último amparo, pela crença de que nada nos retirará do domínio de nós mesmos. Que este desejo esteja dirigido ao nosso vínculo aos deuses ou a nossa pretensa capacidade de julgar e avaliar nossas próprias ações e as ações de outros, isto não muda um dado fundamental, a saber, haveria uma segurança ontológica a me guiar. Nietzsche costumava dizer que nunca nos desvencilharemos de deus enquanto acreditarmos na gramática. Ele tinha razão, e poderíamos ainda acrescentar que nunca nos desvencilharemos de deus enquanto desejarmos nossa invulnerabilidade. E nós sabemos o quanto nossas regressões sociais periódicas estão vinculadas às formas do desejo de imunidade, do estar em possessão de si mesmo, do pertencer a si mesmo, do destruir tudo que me retire de tal possessão de si mesmo.

No fundo, todas essas estratégias, e elas são múltiplas, partilham ao menos um erro fundamental: o erro de acreditar que uma reflexão sobre ética seria a melhor forma de alimentar nosso desejo de invulnerabilidade e de inviolabilidade

Por isso, talvez a única posição ética à altura de nosso tempo deveria partir da procura em assumir uma insegurança ontológica fundamental. Nesse sentido, poderíamos mesmo dizer que a ética tornou-se para nós um aprendizado sobre como cair e como se quebrar. Há certos momentos em que fica claro como o mais importante é saber como cair, como se quebrar. Pois fomos feitos para nos quebrarmos.

Em uma de suas raras declarações sobre educação (que ele julgava uma tarefa impossível), Sigmund Freud afirmava que toda educação estava fadada ao fracasso porque ela partia do aprendizado da norma, das situações ideais, dos princípios. Mas um princípio é o que é, ou seja, apenas algo que aparece no princípio, nunca um resultado. Melhor seria, dizia Freud, se ensinássemos as situações concretas e essas, bem, essas mostram coisas muito diferentes. Melhor seria se nos disséssemos desde o início: “prepare-se porque um dia você irá se quebrar, você irá se trair”. Você irá se deparar com aquilo que não se submete ao seu controle, aquilo que o tira da jurisdição de si mesmo, aquilo que o desfaz em suas identidades, aquilo que desorienta a ação e o julgamento.

Nessas horas, faz toda a diferença saber como cair, como cair de outra forma. Não com a expectativa de restaurar o sentimento de estar intacto, não com esta fúria projetiva que procura jogar para outros a causa de nossas quedas, não com esse desejo mórbido de esconder nossa vulnerabilidade pregando o evangelho da culpabilidade e da punição para os que se afogaram. Mas cair com a solidariedade com os que caíram e cairão, com a consciência da falibilidade de nossa ações e da violência de nossos trajetos. Cair perguntando-se por que se quis cair, o que quis de fato realizar, mesmo que de maneira desesperada. Isso poderia mudar de forma significativa nossa forma de relação a si e ao outro.

Nessas horas, faz toda a diferença saber como cair, como cair de outra forma. Não com a expectativa de restaurar o sentimento de estar intacto. Mas cair com a consciência da falibilidade de nossa ações e da violência de nossos trajetos

As quebras são nosso destino porque somos seres em relação. Não há como evitar quebras porque procuramos colocar em relação corpos com tempos distintos, ritmos distintos, desenvolvimentos idem. Corpos que nos atravessam. Há uma relação fundamental entre desejo e queda, mas não devido à ladainha cristã da culpa por desejar o que não se deveria desejar. A melhor maneira de nos livrarmos dessa teologia travestida de psicologia moral é ressignificando todos os seus significantes. O desejo procura a queda porque ela é o impulso que temos para ser diferente de nós mesmos, diferente do que fomos até agora. Talvez seja por isso que entramos em relação.

Mas isso é indissociável da descoberta de uma violência imanente às relações, uma violência seguramente inextirpável. Só mesmo uma ilusão liberal para acreditar que a diferença vem sob a forma pacificada da tolerância, e não sob a forma agonística da explosão. Menos Locke e mais Francis Bacon (o pintor, não o filósofo) seria útil. Nesse sentido, um erro contemporâneo clássico consiste em tentar reduzir à figura da opressão todas as formas de violência imanente às relações. Quando conseguirmos eliminar as relações de opressão (e nós um dia conseguiremos), ainda restarão essas violências que nos quebram quando estamos em relação. Mas estamos em relação desde o início e até o fim. Talvez uma verdadeira reflexão ética deveria partir disso.

Vladimir Safatle é professor de filosofia da USP


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