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Coluna
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Chega de diálogo. A partir de certo ponto é apenas inútil

Se há algo que marcou o Brasil nos últimos trinta anos foi a profusão de diálogo, quando muitas vezes é necessário dar forma à recusa clara em dialogar. Não é de diálogo que o Brasil precisa. É de ruptura

Manifestação contra as queimadas na Amazônia realizada em São Paulo em agosto de 2019.
Manifestação contra as queimadas na Amazônia realizada em São Paulo em agosto de 2019.Paulo Pinto (Fotos Públicas)

De todas as ilusões que se desfazem atualmente no Brasil, uma das mais urgentes a se livrar é aquela que leva alguns a acreditar que nosso momento histórico pede mais diálogo. Ao contrário, é possível que chegou enfim a hora de dizer claramente: chega de diálogo. A partir de um certo ponto, dialogar é não apenas inútil. É espúrio. Se há algo que marcou o Brasil nos últimos trinta anos foi a profusão de diálogo. Nosso fim da ditadura foi “dialogado”. Antigos oposicionistas, militares torturadores, empresários que apoiaram o golpe e financiaram crimes contra a humanidade: todos eles “dialogaram”, fizeram uma transição “sem revanchismo” (como se dizia a época), sem nenhum terrorista de estado na cadeia. Depois, os governos da Nova República eram todos marcados pelo “diálogo” entre esquerda e direita, mesmo o PP que abrigou o sr. Jair Bolsonaro por 27 anos estava em todas as coalizões de governo. Todos “dialogaram” com Bolsonaro, mesmo quando ele expunha claramente seu desprezo a princípios elementares de direitos humanos. Em uma situação minimamente normal, seus impropérios como deputado teriam lhe valido a cassação de mandato. Como se não bastasse, até mesmo com as igrejas evangélicas o que não faltou foi “diálogo”. Edir Macedo estava lá “dialogando” com Lula e Dilma. O PSC do sr. Marco Feliciano fazia parte da coalizão de Dilma Rousseff. Mais um com quem não faltou “diálogo”.

Neste sentido, a experiência brasileira é pedagógica em mostrar quão pouco se consegue com diálogo. Na verdade, o diálogo é nossa pior maldição. Muitas vezes, é necessário dar forma à recusa clara em dialogar. Quem dialoga com pessoas que louvam torturadores e assassinos como “heróis nacionais” não sabe qual o valor das palavras. Quem procura dialogar com aqueles que sustentam ações ambientais criminosas e tentam por todos os meios esconder a catástrofe que produz até o momento em que o céu de São Paulo se torna escuro por confluência com nuvens de queimadas, perde seu tempo. Não é de diálogo que o Brasil precisa. É de ruptura.

Vejam o caso da destruição da Floresta Amazônica. Nunca o Brasil foi tão claramente colocado na posição de estado-pária pela opinião pública mundial, nunca estivemos tão isolados e dependentes do bem querer dos norte-americanos para evitar uma reação brutal do resto do mundo. Não é só o governo francês que está em rota de colisão conosco. Noruega e Alemanha já suspenderam ajuda econômica à Amazônia. Ou seja, as consequências econômicas só estão a começar. Multinacionais começam a boicotar o couro brasileiro, em breve grupos ecologistas começarão a fazer campanha contra o Brasil. Nunca na história desse país alguém viu algo parecido. Agora pergunte se isso levou o governo brasileiro a modificar sua política ambiental? A resposta é: em nem um milímetro. Infelizmente, o único “diálogo” que latifundiários com mentalidade colonial e assassinos de índios compreendem é o boicote econômico.

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Agora, também fica claro o caráter da elite econômica que sustenta este governo. Há algumas semanas, o presidente do banco Itaú Unibanco, o sr. Candido Bracher, o mesmo banco que bate recordes de lucro líquido enquanto a economia nacional estaria pretensamente em “crise”, mostrou quais são seus verdadeiros interesses. O representante-mor do partido do Dinheiro deu a entender que as declarações de Bolsonaro, fator fundamental para a explicitação da democracia degradada em que vivemos, não afetavam o que realmente importa, a saber, as reformas que privilegiam a elite rentista brasileira. E ainda de quebra afirmou que 12 milhões de desempregados não é algo que realmente deveria nos preocupar, pois isto ajudaria a quebrar a pressão inflacionária.

Os milhões de brasileiros que voltaram à pobreza, os milhares que voltaram à miséria nas ruas da cidade na qual este senhor habita não parecem realmente perturbá-lo. Da mesma forma, ninguém no Partido do Dinheiro está preocupado com o crescimento pífio da economia nacional e com o horizonte de retração que avizinha. Eles se preocupam apenas com a próxima leva de privatizações que aproveitarão como abutres que crescem em volta do poder. Achar que é possível dialogar com esta classe foi uma das mais crassas ilusões que marcou este país. Que ao menos tudo isto sirva para ficar claro contra quem combatemos.

Vladimir Safatle é professor de filosofia da USP

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