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Coluna
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Um 2020 entre profetas das desventuras e profetas da esperança

O mundo sofre hoje tentações de involução autoritária, mas, apesar de tudo, a democracia e os seus valores continuam avançando

Cariocas e turistas aproveitam o último dia de 2019 para curtirem a praia de Copacabana, zona sul da cidade.
Cariocas e turistas aproveitam o último dia de 2019 para curtirem a praia de Copacabana, zona sul da cidade.Tânia Rêgo/Agência Brasil
Juan Arias

Quem na década de 1950 cunhou a expressão “profetas de desventura”, em contraposição aos profetas da esperança, algo que não pode ser mais atual, foi um dos Papas mais humanos e despojados, João XXIII, filho de camponeses pobres, o mais parecido ao hoje papa Francisco. Foi na noite anterior à inauguração do Concílio Vaticano II, que pretendia renovar o rosto triste da Igreja de então, dominada pela retrógrada Cúria Romana, burguesa e afastada do evangelho. Aquela que tentou acusar o Papa de louco por ter tido a ideia de convocar todos os bispos do mundo a Roma para fazer um exame de consciência e tentar responder às ânsias de um mundo que pressionava por uma renovação que recolocasse a Igreja na pureza perdida do primeiro cristianismo.

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Naquela véspera do Concílio, que se anunciava como uma grande batalha na Igreja entre conservadores e progressistas, o Papa João XXIII surpreendeu aos que esperavam um discurso solene perante um acontecimento que havia sacudido a opinião mundial, de todos os credos e de um modo especial dos agnósticos. Em vez de discutir teologia, disse aos mais de 3.000 bispos já presentes em Roma, vindos de todos os continentes, que estivessem atentos aos “profetas de desventuras”, e que assim o Papa ia dormir muito tranquilo aquela noite.

Às milhares de pessoas que lotavam a praça de São Pedro naquela noite de lua cheia ele disse: “Quando voltarem para suas casas, digam aos seus filhos pequenos que o Papa lhes mandou um beijo”. João XXIII sabia que aquele Concílio seria importante para o futuro dos pequenos.

Foi um Papa que nunca compactuou com o pessimismo, nem sequer naquele momento em que vários bispos não puderam ir ao concílio porque estavam detidos nas prisões soviéticas. Era capaz de não dar importância a nada, sabia relativizar tudo. Enquanto os Papas anteriores se sentiam imbuídos de uma missão sobrenatural e se sentiam representantes de Deus na terra, João XXIII chegava a se esquecer de que era Papa. Contou-me isso na época seu secretário, Loris Capovilla, que havia sido jornalista. Uma tarde, o pontífice lhe disse: “Vamos ter que consultar isto com o Papa”. Havia esquecido de que era ele mesmo.

Não era, entretanto, um Papa nem desavisado nem inocente. Sabia muito bem para que estava ali. Em seu testamento, recordando que seu antecessor Pio XII, o príncipe Eugenio Pacelli, antes de morrer havia concedido títulos nobiliários a meia família, João XXIII deixou escrito: “Nasci pobre e morro pobre”. E pediu perdão à sua família “por não poder lhes deixar nada em herança”. Viveu sempre em paz com todos, crentes e ateus. Para ele, os homens eram só irmãos, com seus acertos e suas quedas. No mesmo testamento, deixou uma frase célebre: “Não tenho que pedir perdão a ninguém, porque nunca me senti ofendido por ninguém”. Era um homem em paz consigo mesmo.

Sua simplicidade surpreendia até os líderes de outras religiões. Uma tarde, convidou o pastor da Igreja Luterana de Roma para tomar um café. Não o recebeu com a pompa de Papa. Relativizou seu trabalho. Confiou-lhe: “As pessoas acham que o Papa trabalha muito, o dia todo. Não é verdade. Fazem tudo por mim. Durante a tarde tenho muito pouco para fazer. Então me entretenho com esta luneta. Da janela vou distinguindo as torres das igrejas. Penso que ao redor de cada uma delas vivem famílias que sofrem e se esforçam para poder dar de comer a seus filhos. Então vou parando e rezo por elas”. E tomando a luneta, disse ao pastor protestante: “Olhe, casualmente, a primeira torre que vejo daqui é a da sua igreja. E assim, todas as tardes, vocês são os primeiros pelos quais rezo a Deus”. A história me foi contada por aquele mesmo pastor em uma entrevista. Ficara surpreso e admirado com a simplicidade do Papa católico.

Quando era jovem núncio apostólico na Bulgária, tinha o costume de deixar uma luz acesa em sua casa. E dizia que se algum necessitado passasse debaixo da sua janela poderia entrar. “Não vou perguntar em que Deus acredita, mas sim como posso ajudá-lo.” Era seu lema.

No livro de conversas Sobre o Céu e a Terra, do então cardeal Bergoglio de Buenos Aires (o hoje papa Francisco) e do rabino Abraham Skorka, há uma página que evoca João XXIII. Bergoglio diz ao rabino que quando se encontra com alguém não lhe pergunta em que Deus acredita, mas sim se fez algo pelos outros. Dois Papas ecumênicos que para muitos parecem iconoclastas e hereges, mas que foram capazes de falarem ao coração de todos sem distinções de credos.

Dois Papas que, profetas eles da esperança, são contra os “profetas de desventuras”, porque sabem relativizar as coisas, sabem que, como dizia Jesus, até das pedras podem nascer filhos de Deus e que o pior dos pecados é a discriminação das pessoas, por suas ideias, pela cor de sua pele, por seu gênero ou sua condição social. E que quem menos faz pelo mundo são os profetas de desventuras, incapazes de ver que sem esperança a terra nos afundaria e perderia sentido. Que não é verdade que tudo é pior que antes, porque não é, e que não é com o pessimismo, e sim com um saudável realismo, que se pode continuar construindo o mundo.

Neste 2020, eu preferiria que, ao invés de apostarmos no pessimismo, que costuma ser estéril, apostássemos na esperança, que faz milagres. Isso significa sermos firmes e resistentes contra quem pretende nos impor os dogmas dos profetas das desventuras, em vez dos semeadores de esperanças. Resistentes contra governantes como Bolsonaro e suas hostes mais desesperadas, profetas de desventuras e a favor de profetas da esperança, como foi Marielle, que com sua alegria jovem e sua força vital enfrentou o pessimismo das milícias do Rio contra sua esperança de um mundo mais livre e de todos.

São governantes como Bolsonaro e suas hostes racistas que pretendem “desconstruir” em vez de “construir”; que dividem em vez de unir, que discriminam a todos os diferentes sem perceberem que assim se colocam eles mesmos como diferentes e se autocondenam ao ostracismo. De nada serve que Bolsonaro tente apostar no catastrofismo ético, em esterilizar a cultura, em ferir os valores sagrados da democracia e de suas liberdades, em continuar exaltando torturadores e ditaduras. Será um perdedor como acabam sendo todos os pessimistas empedernidos. Marielle, profeta da esperança, já ganhou a batalha contra ele.

O mundo sofre hoje tentações de involução autoritária, e começam a levantar a cabeça as bestas do nazismo e do fascismo que achávamos derrotados para sempre, mas, apesar de tudo, a democracia e os seus valores continuam avançando. Esta boa notícia nos deu neste fim de ano a jornalista e escritora Miriam Leitão em sua coluna d’O Globo ― e isso que ela, que já foi vítima da ditadura, teria motivos para estar na fila dos profetas das desventuras. Não, Miriam se alegra com esses dados significativos que ela tomou de Steven Pinker, professor de psicologia de Harvard e escritor de fama mundial. Se a chegada de Donald Trump, escreve, significou o início e um período assustador, apesar dele e de seus seguidores de sabor fascista na Turquia, Hungria e Rússia e agora em parte na Espanha com a ascensão do ultradireitista Vox, já com forte presença no Parlamento, o fato é que “o total de democracias está crescendo em todo mundo”. Em 2018, o número de países democráticos chegou a 99. Em 1978 eram apenas 40. E continuam aumentando.

Sim, entre sombras e tropeços, entre avanços e retrocessos, sem esquecer a lição demoníaca dos extermínios em massa de ambos os lados ideológicos, o mundo continua lutando por sua sobrevivência, oferecendo novas conquistas e ampliando os espaços de liberdade. Há apenas cem anos, a mulher não tinha direitos, era uma pura escrava do marido. A jovem Greta, 17 anos completados nesta quinta-feira, profeta da esperança em defesa do planeta, teria sido queimada na fogueira na Idade Média. Hoje é ouvida com respeito pelos grandes da Terra.

Há apenas 80 anos não existia o estatuto dos direitos das crianças, que eram vistas como objetos de seus pais. Hoje essa carta de direitos se estende até aos animais. Até ontem, ir fazer a guerra era visto como uma honra, e as famílias se orgulhavam das medalhas que seus filhos obtinham no campo de batalha, mesmo que lá deixassem a vida. Hoje não acredito que haja uma só mãe no mundo que se sinta feliz e orgulhosa de que seu filho vá morrer em uma guerra. O salto foi quântico. Leiam Escravidão (Globo Livros), o magnifico e aterrador livro de Laurentino Gomes, e verão o inferno que viveram milhões de africanos vendidos como escravos. Sua leitura dá arrepios. E isso foi ontem, e hoje é algo que vemos como um inferno, embora os descendentes daqueles escravos continuem pagando suas consequências. Mas nem tudo agora é igual. Ontem era algo natural. Hoje nos envergonha e escandaliza, lutamos contra aquela ignomínia. Ninguém mais acha normal.

Não chegamos ainda a uma democracia completa que defenda os direitos de todas as minorias, mas pelo menos sabemos distinguir entre liberdade e barbárie.

Os pessimistas continuam acreditando que não existe mais esperança. Os profetas das desventuras continuam anunciando o fim do mundo. Prefiro quem não perdeu a esperança de continuar abrindo sulcos na terra para plantar sonhos de liberdade. São eles os capazes até de arriscar suas vidas por defender a liberdade em vez de entregar as armas, que é o melhor presente que se pode oferecer aos profetas do niilismo.

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