Auxílio Brasil e a marcha à ré na política social e liberal brasileira
Troca de programas não tem como foco atualização, melhora ou correção de problemas do Bolsa Família, mas, enterra um dos principais trunfos atribuídos aos governos petistas, notadamente os de Lula
Dia 17 de novembro, data do primeiro pagamento do programa Auxílio Brasil, marca a história da política social e econômica brasileiras.
No entanto, não há o que comemorar, pois, a vinda à luz desse programa marca também o momento de extinção do Bolsa Família, o maior programa de transferência de renda que o país já teve, em operação desde 2003, tendo ocorrido em seis mandatos presidenciais. Apesar das divergências ao longo dos anos, o programa foi reconhecido por atores dos mais diversos espectros políticos como responsável por amenizar a situação de famílias pobres ou extremamente pobres e fomentar o crescimento econômico.
A atual troca de programas não tem como foco uma atualização, melhora ou correção de problemas que uma iniciativa da dimensão do Bolsa Família pode apresentar, mas, sim, se orienta pela pretensão de enterrar um dos principais trunfos atribuídos aos governos petistas, notadamente os de Lula. É natural que a memória eleitoral associada ao principal candidato de oposição ao governo incomode a administração de Bolsonaro. O que se esperava, entretanto, era respeito e continuidade das políticas públicas de comprovada eficácia como sinal de maturidade governamental no Brasil.
Se por um lado Bolsonaro liderou e fez crescer movimentos conservadores radicais, sua chegada ao Palácio do Planalto foi afiançada por atores que alegavam serem detentores da representatividade necessária para defender o liberalismo econômico. Paulo Guedes tornou-se, além de oráculo do Presidente, o caução dessa responsabilidade, já esmorecida pelas perdas em sua equipe e pelos resultados insatisfatórios.
Foi este time que propôs, em 2018, em programa registrado na Justiça Eleitoral, garantir uma renda mínima a todas as famílias brasileiras. Alegaram que “Todas essas ideias, inclusive o Bolsa Família, são inspiradas em pensadores liberais, como Milton Friedman”, guru universal do liberalismo. De fato, sua doutrina afirma que, para amenizar a pobreza, é preciso fortalecer o direito de escolha individual, possibilitando que cada pessoa tome suas próprias decisões. O ex-professor da Universidade de Chicago, onde estudou Guedes, sugeriu a criação de um “imposto de renda negativo”, um valor repassado pelo governo aos cidadãos cujos salários fossem menores que o piso de recolhimento de tributos.
Friedman afirma em sua obra ficar angustiado com o “espetáculo da pobreza” e que os efeitos positivos de sua amenização seriam sentidos, desde que todos os membros de grandes sociedades contribuíssem de forma justa para que isso viesse a acontecer. Daí a razão de considerar que a caridade privada não é capaz de resolver tais problemas por si mesma. Na base de seu raciocínio está a simplificação de medidas de superação dessa condição, impondo taxas - através do imposto de renda regular, positivo - que subsidiam diretamente aos mais pobres.
Neste ponto, o Auxílio Brasil, criado pelo atual governo sem qualquer diálogo com a vasta comunidade de especialistas em políticas de transferências de renda no país, se distancia de medidas de racionalização do sistema. Pelo contrário: o Auxilio Brasil institui nove categorias diferentes de benefícios, dentre os quais aqueles que adotam a lógica meritocrática no esporte e na ciência, inatingível para boa parte das crianças e adolescentes que não dispõem sequer das condições mais básicas para exercerem sua vida escolar.
A fragilização institucional da rede de proteção social que necessita de capilaridade e adesão em diferentes níveis federativos não joga a favor, distanciando a prestação de demais serviços universais, como os de educação e saúde, da transferência de renda. Isso, em um cenário cujo sucesso do programa anterior se dava inclusive pelo atrelamento da frequência escolar e vacinação em dia enquanto condicionante para pagamento das mensalidades, retroalimentando a dinâmica de acesso a direitos sociais.
As condições de elegibilidade e patamares de benefícios não avançam em relação ao Bolsa Família, ficando, ainda, muito distantes de serem capazes de encerrar o espetáculo da pobreza que tanto incomodava Milton Friedman. A indefinição sobre os recursos disponíveis para o programa e sua perspectiva de pagamento somente até o fim de 2022 em valores de R$400, entregam não somente seu caráter de provisoriedade, mas também o fato de não ser uma política de Estado, mas de governo, para atender aos interesses eleitoreiros de Bolsonaro, seguramente aflito com os resultados das pesquisas de intenção de voto para o próximo pleito presidencial. A necessidade de aprovação de Emendas Constitucionais que permitam contornar o teto de gastos, como no caso dos Precatórios, revelam improvisos de um governo de resultados inexpressivos, quando não, negativos.
As recentes manobras e derrapadas econômicas de Bolsonaro e sua equipe demonstram a tensão entre seus objetivos e o ideário liberal que se abrigou em sua candidatura e seu governo. Muitos se perguntam de que forma será possível reconciliar a gestão bolsonarista a este ideário, decepcionados que estão com a administração fiscal e tributária do país. Vale lembrar que empreender ideais liberais não se limita à administração das finanças públicas. Será preciso verificar se estão dispostos a adotar como parte de sua agenda a efetiva eliminação da pobreza e a ampliação dos direitos de dignidade por meio de políticas sociais. Do contrário, aplica-se o direito à liberdade apenas aos indivíduos com maior prosperidade, cabendo aos mais pobres, apenas espaços que restam em meio a manobras políticas com “p” minúsculo.
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