O projeto de lei antiterrorismo serve a quem?

Em um país sem política externa expansionista, as formulações sobre terrorismo se orientam a criminalizar opositores políticos, particularmente no difícil cenário eleitoral que se desenha para 2022

Policiais se posicionam para conter protesto contra Jair Bolsonaro no Recife, em maio, ato que terminou em forte repressão.INSTAGRAM @hugomunizzz (Reuters)

Há cerca de 20 anos, com os ataques às torres gêmeas nos EUA, a palavra terrorismo entrou no vocabulário mundial. Osama Bin Laden será esquecido, mas o tipo de violência política que é chamada de terrorismo permanece. Na realidade, o terrorismo enquanto prática não era uma novidade. Estados latino-americanos ...

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Há cerca de 20 anos, com os ataques às torres gêmeas nos EUA, a palavra terrorismo entrou no vocabulário mundial. Osama Bin Laden será esquecido, mas o tipo de violência política que é chamada de terrorismo permanece. Na realidade, o terrorismo enquanto prática não era uma novidade. Estados latino-americanos lançaram mão dele enquanto um método eficiente para a sustentação das ditaduras militares, o chamado terrorismo de Estado.

Entretanto, o termo globocolonizado ocupou um lugar semelhante ao do comunismo durante a Guerra Fria. O comunismo/terrorismo era tão condenável moralmente que, diante disso, um conjunto de práticas de eliminação ou tortura de humanos foi autorizada. E na esteira da Guerra ao Terror desencadeada pelos EUA, leis antiterrorismo foram aprovadas na América Latina, mesmo sem nenhum ataque real.

Mas afinal, o que é terrorismo? Em linhas gerais, o ato de terrorismo tem como objetivo estratégico provocar pânico, pavor incontrolável. O agente do terror pode ser um indivíduo, um grupo, outro Estado ou o próprio governo, com o objetivo de reprimir certos comportamentos sociais. Em suma, a principal característica do terrorismo é difundir o medo entre a população de maneira a modular seu comportamento. E, para alcançar esse objetivo, o agente do terror escolhe a vítima tática: um indivíduo ou uma parte da população que deve morrer ou sofrer sérios danos.

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Na Bíblia, “não tenhais medo daqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma; teme, antes, aquele que pode destruir a alma”. Note-se que a vítima estratégica visada não é quem morre fisicamente, quem tem o corpo destruído; mas quem fica vivo e aterrorizado, tem a alma capturada pelo medo.

O Brasil tem a Lei Antiterrorismo 13.260/2016, e agora discute uma nova legislação através de uma Comissão Especial, o Projeto de Lei 1595/2019 do deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO). Sim, em plena pandemia, essa foi a prioridade escolhida para tramitação pela bancada governista. O PL já foi objeto de manifestação da ONU e de diversas entidades de Direitos Humanos por guardar potenciais violações.

Os Estados latino-americanos não foram vítimas de ataques terroristas em virtude do seu comportamento internacional. Somos periféricos e não temos uma política externa expansionista. Sofremos mais da síndrome do “viralatismo” do que propriamente da arrogância internacional. Os EUA choraram seus mortos nos ataques, claro. Mas choraram acima de tudo a surpresa de ver seu espaço de poder questionado: como assim tenho vulnerabilidades?

Diante a ausência de terrorismo real no Brasil, fica claro que as formulações sobre terrorismo se orientam a criminalizar opositores políticos, particularmente no difícil cenário eleitoral que se desenha para 2022. O PL 1595/2019 define o ato terrorista como aquele ‘’que seja perigoso para a vida humana ou potencialmente destrutivo em relação a alguma infraestrutura crítica, serviço público essencial ou recurso-chave; e que aparente ter a intenção de intimidar ou coagir a população civil ou de afetar a definição de políticas públicas por meio de intimidação, coerção, destruição em massa, assassinatos, sequestros ou qualquer outra forma de violência.’’ Nessas breves palavras, ele guarda 5 armadilhas:

1. Na formulação do governo, é criminalizada a intenção, uma vaga incitação ou apologia, e não apenas a conduta violenta contra pessoas. Pensa-se o potencialmente destrutivo, e não a ação real.

2. Não existe terrorismo contra coisas, objetos, serviços públicos essenciais ou mesmo infraestruturas críticas, de propriedade pública ou privada. Nada disso sente medo. Nenhum banco deixa o país porque teve a sua vidraça quebrada. As pessoas continuam a ir ao banco, pulando os cacos.

3. O PL prevê o excludente de ilicitude e cria uma medalha de mérito para atuações contraterroristas, o que concede uma espécie de licença para matar, pois é o agente de segurança na ponta da linha quem interpreta a ameaça. Ainda prevê a infiltração de agentes e a utilização de identidade falsa. As questões fazem parte da chantagem das instituições militares sobre as civis, contrapartidas exigidas diantedos danos de imagem prováveis quando se envolvem em uma guerra contra cidadãos brasileiros.Por fim, o PL ainda prevê a utilização de efetivos militares no exterior, em Estados onde se identifique atividade terrorista.

4. PL propõe a criação de um sistema antiterrorista, com estruturas novas (o que inclui aumento de efetivo e de gastos), e acesso indiscriminado a dados privados de suspeitos, sob o controle do governo federal. Em outras palavras, propõe a construção de uma polícia política para Bolsonaro. Nesta estrutura, qualquer servidor público poderá participar de atividade contraterrorista, espionando seus colegas. Para isso, se inspira nos EUA e em Israel, países agressivos na política internacional e por isso vítimas potenciais de ataques, ainda que extremamente bem armados. Além disso, as agências de segurança israelenses já foram condenadas diversas vezes na ONU por violar direitos humanos, notadamente do povo palestino que é mantido em regime de apartheid.

5. Propõe-se a construção de campanhas anti-terrorismo, mas não existe um “perfil típico” de um terrorista em potencial. Pensar nisso alimenta o racismo e a xenofobia. O Brasil precisa ver seus países vizinhos como parceiros para o desenvolvimento regional, e não potenciais fornecedores ou intermediadores de terroristas.

O terrorismo é, sem dúvida, ineficaz enquanto mecanismo para mudar o mundo. Gera forças repressoras que tendem a ser eliminadas tão logo pratiquem suas ações. Sermos críticos a táticas terroristas não nos torna favoráveis a adoção de leis draconianas que criminalizam o exercício da política, como é o caso do PL em discussão.

Movimentos sociais, sindicais, juvenis ou religiosos não são terroristas. Eles almejam ganhar adeptos para as suas causas e reivindicações com ações pacíficas, apontando as insuficiências das políticas públicas do Estado. Não disputam o monopólio da violência, pelo contrário, reivindicam que o Estado esteja presente com políticas públicas de saúde, educação e de segurança.Buscam ações para conquistar a simpatia da população em geral, e não espalhar o terror.

Mesmo ações violentas praticadas no contexto de protestos pacíficos não têm como objetivo espalhar o terror, mas se aproveitar do impacto comunicativo que a violência infelizmente tem na nossa sociedade. Configuram crimes, por exemplo contra a patrimônio, mas não são ações terroristas.

Uma medida efetiva para o Brasil seria um maior investimento no controle de armamentos, algo que, sabemos, vai na contramão da atual política de flexibilização do governo. E não se trata apenas dos armamentos fabricados com esse fim, mas de insumos que, orientados por intenções terroristas, poderiam ser empregados com esse fim, como é o caso de explosivos ou agrotóxicos, cujo acesso de forma regular ou clandestina no Brasil é bastante simples.

Os terroristas não ocupam espaços, não abrem frentes de combate, não fixam posição. Os acampamentos, ocupações, escolas, sindicatos e outros, ao contrário, têm endereço fixo, não têm armamentos e nem combatem.

Sua luta não é militar, mas política e pacífica. Precisamos dar um basta à militarização da sociedade.

Ana Penido é pesquisadora do Instituto Tricontinental e do Grupo de Estudos em Defesa e Segurança Internacional (GEDES – UNESP). Faz pós-doutorado no Programa San Tiago Dantas (UNESP – Unicamp – PUC/SP).

Pedro B. Bocca é mestre em Relações Internacionais (PUC/SP) e internacionalista na ABONG – Democracia, Direitos e Bens Comuns.

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