Quebra de patentes para vacinas da covid-19: como o Brasil precisa colaborar nesse debate?

Falta ao Governo reconhecer que a crise sanitária que o novo coronavírus institui é também uma crise humanitária. O lucro não pode estar acima da vida

Morador de Serrana, no interior de São Paulo, é vacinado contra a covid-19.Toni Pires

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Na abertura da Assembleia Mundial de Saúde, realizada no dia 24 de maio, o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, abandonou qualquer verniz diplomático que poderia restar em seu discurso para apontar o escândalo de apenas 10 países do mundo concentrarem 75% das doses disponíveis de vacina contra a covid-19. No Brasil, com parte da população indignada com novas cenas de desrespeito às normas sanitárias e descaso explícito do presidente da República, que foi visto desfilando de motocicleta e aglomerando sem máscara na cidade do Rio de Janeiro, completavam-se 14 meses desde o primeiro caso confirmado de infecção pelo novo coronavírus. São mais de 470.000 pessoas mortas no país, sem que as medidas necessárias para interromper a progressão da epidemia entre nós tenham sido postas em prática de forma técnica e consistente.

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Será que ainda nos lembramos do momento em que o anúncio da segurança e da eficácia das vacinas para a covid-19, ainda em novembro de 2020 trouxe tanta esperança para todas e todos nós? Seis meses depois, escancarado o apartheid da vacina, a esperança de uma vida sem covid-19 está restrita somente aos que vivem nos países ricos. Estes, apesar de terem adquirido quantidades de vacina muitas vezes superiores às necessidades de sua população, têm se recusado ou demorado demais a colocar seu excedente à disposição de todo o mundo. Não pode haver resposta adequada a uma pandemia que não seja global e abarque toda a humanidade. Isto inclui a urgência de trabalharmos juntos para garantir a distribuição equitativa de vacinas pelo mundo. Para isso, é urgente que o Brasil faça a sua parte!

Após depoimentos na CPI da Pandemia, sabemos que o Governo federal recebeu e negou diversas ofertas para compra de vacinas de diferentes fabricantes, prejudicando a imunização da população brasileira. Sabemos também que o Governo federal se recusou a participar de duas outras iniciativas que poderiam alterar a desigualdade e o padrão de vulnerabilidade atual de brasileiros e de residentes em outros países do mundo. Primeiro, não investiu todos os recursos possíveis no consórcio Covax, iniciativa da OMS para levar cotas de vacinas para todos os países do globo. Depois, o Brasil não apoiou a proposta dos Governos da Índia e África do Sul para a suspensão global temporária das patentes e outros direitos de propriedade intelectual (denominada Waiver), no âmbito da Organização Mundial do Comércio. Após seis meses atrasando as negociações e traindo a própria história da diplomacia em saúde do país, o Governo brasileiro diz que se engajará de maneira ativa e transparente nas negociações.

No Congresso Nacional tramitam quase uma dezena de projetos de lei que visam facilitar a emissão de licenças compulsórias durante a pandemia de covid-19 e outras futuras emergências nacionais em saúde pública. A licença compulsória nada mais é que a interrupção do monopólio da empresa detentora da patente, do privilégio temporário de impedir que outras empresas entrem no mercado.

No dia 29 de abril, o Senado Federal aprovou os projetos de lei 12/21 e 1171/21, na forma de substitutivo. Embora trate-se de PL autorizativo, ou seja, que não obriga ações do Executivo, o PL é a primeira sinalização política de que é preciso agir para enfrentar as barreiras que as patentes colocam ao enfrentamento da epidemia. De acordo com o substitutivo aprovado, o Executivo federal tem de elaborar uma lista com as tecnologias de interesse e, salvo condições específicas que as empresas têm de cumprir, em 30 dias o Governo teria de emitir licenças compulsórias para tais tecnologias em saúde. Esse PL já está na Câmara dos Deputados, mas não foi pautado pelo presidente Arthur Lira (PP-AL).

Apesar da decisão favorável, precisamos ir além e criar um entendimento nacional de que não pode haver monopólios durante pandemias, enquanto a vida de tantas e tantos está em perigo. Isso é o que propõe o PL 1462/20, de autoria de 15 parlamentares e que já tem requerimento de urgência protocolado na presidência da casa, ao atrelar a declaração de emergência nacional em saúde pública à emissão de licenças compulsórias para toda e qualquer tecnologia de saúde útil ao enfrentamento dessa pandemia. Essa proposição está na pauta da Comissão de Seguridade Social e Família (CSSF) da Câmara dos Deputados e deve ser votado o quanto antes para avançar pelas comissões da casa.

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No debate na OMC, o Governo brasileiro ficou isolado quando o Governo dos EUA anunciou, de forma histórica, apoio a suspensão de patentes para vacinas (posição mais conservadora que a proposta de Índia e África do Sul). Após a mudança de postura dos EUA, o Brasil —único dentre os países de renda média e baixa a manifestar-se contrariamente ao Waiver— sinalizou em nota conjunta dos Ministérios das Relações Exteriores, da Saúde, da Economia e de Ciência, Tecnologia e Inovações, alguma disposição para apoiar as negociações. Em sua nota ambígua e imprecisa, no entanto, o Governo não se posiciona de fato a favor da suspensão das patentes e, por consequência, da saúde de todas e todos. Passa longe das determinações da ONU para que os Estados alinhem suas leis de propriedade intelectual com suas obrigações em direitos humanos, dentre eles os direitos à saúde e ao usufruto dos progressos científicos. Falta ao Governo do Brasil reconhecer que esta crise sanitária que a covid-19 institui é também uma crise humanitária. As vidas precisam estar acima dos lucros! E tampouco podem os governos se omitirem de suas responsabilidades frente ao dever de garantir às populações o acesso universal, gratuito e equitativo às vacinas e medicamentos adequados ao combate à pandemia.

Estamos nos aproximando da inconcebível marca de meio milhão de mortos por uma doença para qual já existe imunizante e, apesar de o nosso país possuir uma trajetória sólida e mundialmente reconhecida capacidade de vacinação em massa através do Sistema Único de Saúde, não há atalhos no caminho para a superação desta tragédia, atravessada por desigualdades estruturais históricas que só fazem se aprofundar. O enfrentamento à pandemia e as suas consequências precisa aliar políticas efetivas de saúde e assistência social e desconstruir o falso dilema que opõe a economia e o direito à vida. A suspensão temporária das patentes em nível global, assim como as iniciativas legislativas que buscam adequar o licenciamento compulsória à dinâmica de uma pandemia, representa um passo importante na construção de uma recuperação justa da crise social e sanitária que nos toca enfrentar enquanto humanidade.

Jurema Werneck é diretora-executiva da Anistia Internacional Brasil.

Pedro Villardi é coordenador do Grupo de Trabalho sobre Propriedade Intelectual e coordenador de projetos da Associação Brasileira Interdisciplinar de AIDS.

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