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Pandemia de coronavírus
Coluna
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As lágrimas de Bolsonaro

Pior que o pranto dos poderosos são as lágrimas que os mais pobres e perseguidos têm que engolir antes que cheguem aos seus rostos endurecidos pelo abandono

Morador da favela de Paraisópolis, em São Paulo, em isolamento contra o coronavírus.
Morador da favela de Paraisópolis, em São Paulo, em isolamento contra o coronavírus.AMANDA PEROBELLI (Reuters)
Juan Arias

Já não é mais segredo que o presidente Jair Bolsonaro sofre crises de choro. Às vezes no silêncio da noite, como ele mesmo confessou, e às vezes perante alguns interlocutores do Planalto, como publicou Igor Gielow em sua coluna da Folha de S.Paulo.

Poderia parecer estranho que o ex-capitão paraquedista, um militar atleta, que defende a ditadura e a tortura, cuja paixão são as armas, possa chorar. Conta-se que chora porque se sente atacado por todos, sobretudo pela imprensa que ele diz que o odeia. E porque começa a perder milhões dos que tinham votado nele e hoje estão arrependidos. E não sabe como reconquistá-los.

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É sabido que suas preocupações, mais do que a tragédia do coronavírus, são que possa ser ou não reeleito em 2022 ou que tenha que deixar a Presidência antes de acabar o mandato. Tudo isso, entretanto, poderia lhe causar raiva, ira e desejos de vingança. Mas chorar? Não é fácil encontrar no mundo presidentes da República importantes com crise de pranto. Vocês imaginam um Putin ou mesmo um Trump soluçando por perderem consensos?

Sobre o choro existe uma grande literatura psicológica. Sabemos que, como rir, chorar também é uma faculdade exclusiva dos seres racionais. Os animais não choram. E os humanos choram mais de dor, de emoção e alegria do que de medo. Diz-se que choram mais as mulheres que os homens, mas se trata de algo cultural mais do que biológico. É atávico. Conta a lenda que quando o último rei islâmico de Granada (Espanha), Boabdil, saiu da Alhambra após entregar as chaves aos Reis Católicos, em 1492, sua mãe, a sultana Aixa, pronunciou a famosa frase: “Você chora como mulher o que não soube defender como homem”. Nesta frase está contida toda a literatura do mito da suposta fragilidade da mulher que é a que chora diante do perigo. Os homens não choram.

O que seria interessante saber é se o presidente que chora em suas noites de insônia —além de chorar porque se sente incompreendido e com medo de que o tirem do seu trono— chora também por outros motivos nobres, como os males que o Brasil sofre. E certamente não lhe faltam motivos para sofrer e chorar e se preocupar com este país hoje amedrontado pela epidemia do coronavírus e onde milhões de pessoas sonham com um trabalho que lhes permita viver com decência, e que hoje temem perder o pouco que resta.

Há mil motivos mais nobres para que Bolsonaro possa chorar do que o medo de que seus ministros mais importantes ou os militares de seu Governo possam abandoná-lo. Há motivos para chorar vendo a cobiça dos bancos que enforcam milhões de trabalhadores com seus juros, entre os maiores do mundo, e que continuam impassíveis e frios também diante da tragédia da epidemia. Há motivos de dor frente ao mar de privilégios dos políticos e das castas que resistem a morrer e que são uma ofensa à dignidade dos que sofrem necessidades e são abandonados à própria sorte.

O que seria interessante saber é se o presidente que chora em suas noites de insônia chora também por outros motivos nobres, como os males que o Brasil sofre

Seria um ponto a seu favor se Bolsonaro, o duro, fosse também capaz de chorar por se sentir responsável por todas as lágrimas derramadas neste país pelos que mais precisariam ser ajudados; de todas as dores das mães que perdem seus filhos vítimas de uma violência da qual os políticos parecem desviar seu olhar. E, embora seja lhe pedir demais, que fosse capaz de chorar também pelo assassinato contínuo da Amazônia e de seus habitantes, a quem nos custa aceitar que sejam tão ou mais humanos que nós, apesar de serem quem melhor conserva valores exponenciais do Homo sapiens que nossa civilização esqueceu.

É possível que as crises de choro que afligem Bolsonaro sejam um alarme de algum transtorno psíquico, como alguns tentam insinuar. Mas o que mais preocupa é que o presidente de um país da envergadura do Brasil, com milhões condenados ao abandono, seja ao mesmo tempo condescendente com um capitalismo que assassina os mais pobres e excluídos do sistema.

Não sabemos o motivo real dos choros do presidente, mas certamente não parece que seja, por exemplo, pelos idosos que, segundo ele, não importaria que fossem devorados pela epidemia. Nem pelos mais pobres e marginalizados pelo sistema, nem pelos diferentes, os não atletas, aqueles a quem a natureza já castigou e a humanidade deixa abandonados.

O Brasil, hoje, mais que de lágrimas do presidente, necessita de políticas valentes de recuperação de uma sociedade doente de medo porque não sabe se quem deveria cuidar dela prefere continuar obstinado a seus privilégios e à sua voracidade de poder em vez de se sacrificar por seu resgate social e político.

Pior que o pranto dos poderosos são as lágrimas que os mais pobres e perseguidos têm que engolir antes que cheguem aos seus rostos endurecidos pelo abandono a que foram condenados por um poder que tem alergia aos pobres, um vocábulo que lhes custa até pronunciar.

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