Apoio do Partido Comunista do Chile à eleição na Nicarágua impacta candidato da esquerda a dias da eleição

Respaldo do PC aos resultados eleitorais que deram vitória a Daniel Ortega obriga Gabriel Boric, um dos favoritos nas eleições presidenciais de 21 de novembro, a se distanciar de aliados. No Brasil, PT soltou nota de apoio a eleições nicaraguenses, mas depois suspendeu

O candidato à presidência do Chile pelo Apruebo Dignidad, Gabriel Boric.MARTIN BERNETTI (AFP)

A candidatura presidencial do deputado do Frente Ampla, Gabriel Boric, um dos favoritos nas pesquisas, enfrentou um novo teste a apenas nove dias antes do pleito. O dilema veio após o Partido Comunista (PC) e outros grupos à esquerda aliados publicarem uma declaração de apoio ao regime de Daniel Ortega e às questionadas eleições ocorridas no último domingo, na Nicarágua. “O povo nicaraguense foi às urnas em massa para eleger democraticamente suas autoridades e o fizeram em paz, de acordo com seus princípios institucionais e suas leis vigentes”, diz a carta, que rejeita a decisão da chancelaria chilena —ao lado de boa parte da comunidade internacional, a pasta não reconheceu a legitimidade das eleições do país centro-americano, considerando que elas “perpetuam um regime ditatorial”. A definição do Partido Comunista Chileno levou o próprio Boric a tentar se desvencilhar do que disse o partido —com o qual tem aliança para formar o governo— mas não sem deixar o candidato em uma posição incômoda na reta final das eleições de domingo, dia 21.

“Convido o PC a se retratar de sua posição perante a Nicarágua”, disse nesta sexta-feira o candidato à presidência da Apruebo Dignidad, aliança entre a Frente Ampla e o Partido Comunista. Pouco antes, em seu Twitter, o deputado de 35 anos escreveu: “Em nosso governo, o compromisso com a democracia e os direitos humanos será total, sem qualquer tipo de apoio a ditaduras e autocracias, incomode quem incomodar. A Nicarágua precisa de democracia, não de eleições fraudulentas ou de perseguição a oponentes “.

O ex-presidente Lula viveu uma saia justa semelhante nesta semana, depois que o PT soltou uma nota nesta segunda-feira, destacando as eleições nicaraguenses como “uma grande manifestação popular e democrática”. Lula, que havia cobrado o respeito à democracia na Nicarágua, em agosto, não se manifestou. Os repúdios públicos levaram o PT a retirar a nota do ar e a presidente do partido, Gleisi Hoffman, a declarar que a posição do PT em relação qualquer país “é de defesa da autodeterminação dos povos, contra interferência externa e respeito à democracia, por parte de governo e oposição”, escreveu ela

Falta, agora, ver no Chile, o impacto que a declaração do Partido Comunista terá na fase final de uma campanha aberta e competitiva, na qual o outro nome com chances eleitorais reside na extrema direita, liderada pelo candidato José Antonio Kast. Com um discurso baseado na ordem, Kast teria chance de ir ao segundo turno, em 19 de dezembro, segundo as pesquisas. A polêmica em torno da manifestação sobre a Nicarágua aponta justamente para um dos principais elementos que cercam o candidato de esquerda: o nível de influência que o Partido Comunista terá em seu possível governo, uma gestão em que a legenda chegará com uma posição forte e protagonista, ao contrário do que se viu durante o segundo mandato da ex-presidenta Michelle Bachelet (2014-2018); naquela oportunidade, os comunistas não alcançaram os principais ministérios.

“As ambivalências de Boric e sua inexperiência política não deveriam preocupar tanto, assim como a impressão de sua pouca ou nenhuma autonomia em relação ao Partido Comunista, o que, claramente, não é o melhor para o cenário complexo em que terá que governar, por mais limitado e breve que seja”, disse a analista política María de los Ángeles Fernández. Para Mauricio Morales, acadêmico e analista chileno, “Gabriel Boric será presidente do Chile por ampla maioria se neste exato momento declarar uma ruptura definitiva nas relações com o PC, excluindo o partido de sua coalizão diante do apoio ao processo fraudulento e ditatorial na Nicarágua “, escreveu no Twitter.

A advogada especialista em política externa Paz Zárate, da equipe de Relações Internacionais da candidata democrata-cristã à presidência, Yasna Provoste, afirmou que a declaração do PC “não é surpreendente”. “O PC chileno protegeu atrocidades que ocorreram na China, Rússia, Cuba, Venezuela, para citar apenas alguns casos nos últimos tempos. Mas o problema não é só o PC. Isso é endêmico neste setor”, opina, referindo-se a posições até mesmo dentro da Frente Ampla. “Com base em uma visão deturpada do princípio da autodeterminação dos povos, [o partido] consistentemente fez vista grossa às violações dos direitos humanos amplamente vistas na América Latina e em outras regiões”, escreveu Zárate, que recordou declarações recentes dos principal dirigentes da sigla comunista, inclusive da geração de jovens integrantes, como Camila Vallejo e Karol Cariola. “O problema que permanece para o candidato Boric é que ninguém governa sozinho. Boas intenções pessoais não resolvem as contradições internas de uma coalizão de governo”, finalizou a pesquisadora.

O Partido Comunista Chileno até hoje mantém sua plena adesão à doutrina marxista-leninista. Além disso, nas últimas décadas não adotou posições moderadas, como é o caso do Partido Comunista Italiano, que finalmente se fundiu ao Partido Democrático com setores progressistas oriundos do Democracia Cristã, Partido Socialista e setores independentes. Até no Governo da Unidade Popular de Salvador Allende (1970-1973), “o comunismo chileno tinha uma linha doutrinariamente revolucionária alinhada com a URSS, mas uma prática com muitos elementos reformistas e flexíveis na política interna”, explica Ernesto Ottone, acadêmico do Colégio de Paris.

Após o golpe de Estado de 1973, porém, quando a ditadura exterminou grande parte das principais lideranças e seus militantes foram assassinados e perseguidos, houve fortes tensões internas entre os que defendiam a moderação e os que apoiavam a luta armada para derrotar o regime de Augusto Pinochet. E esta finalmente prevaleceu por volta de 1979: “Tornou-se, então, um partido de extrema esquerda”, explica Ottone, que era membro do PC e acabou renunciando à filiação justamente por isso. Já sob governos democráticos desde 1990, foi um partido testemunhal que atuou como oposição ao Concertación, de centro-esquerda, embora certos pactos com o partido no poder tenham permitido aos comunistas entrar no Congresso a partir de 2010. No segundo governo Bachelet, eles voltaram ao Palácio de La Moneda como membros do extinto conglomerado Nueva Mayoría, mas em segundo plano.

“O PC mantém seu crescimento gradual desde que entrou com três deputados na lista eleitoral com o Concertación em 2010, dobrou em 2013 e elegeu oito deputados em 2017. Com 13 deputados, eles se tornarão [a partir de 2022] o principal partido do Apruebo Dignidad, embora representem menos da metade do Frente Ampla, se for considerada uma unidade política“, diz o relatório do especialista eleitoral Pepe Auth, sobre a nova composição do Parlamento, que será renovado em 21 de novembro em paralelo às eleições presidenciais.

Depois da polêmica causada no centro da campanha de Boric, os principais líderes do comunismo chileno tiveram que recuar. “A política externa no Governo do Apruebo Dignidad ficará a cargo de Gabriel Boric. O PC obedecerá, mesmo se houver diferenças. Mas nesta matéria o nosso propósito é chegar ao máximo de acordos, com disposição para discutir todos os aspectos“, declarou pela manhã o presidente dos comunistas chilenos, deputado Guillermo Teillier.

Vallejo, que desempenha um papel importante na campanha do Boric —ambos foram líderes estudantis nos protestos de 2011— também deu sua versão sobre o caso, algo inusitado em um partido organizado como o PC, que raramente permite que se exponham diferenças internas em público. “Esta afirmação não foi discutida nem resolvida pela direção coletiva do partido. Condenamos as violações dos direitos humanos na Nicarágua, no Chile e em qualquer parte do mundo. Gabriel Boric será o nosso presidente e será ele quem definirá a política externa do Governo”, garantiu a deputada, que não voltará ao Parlamento, mas que se desenha como um possível nome a algum ministério importante caso Boric seja eleito.

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