Política migratória de Biden continua à espera da grande reviravolta prometida
Governo manteve algumas medidas polêmicas de Trump e a ambiciosa reforma apresentada em janeiro permanece bloqueada no Congresso
Joe Biden chegou à Casa Branca carregando debaixo do braço a agenda de imigração mais ambiciosa em três décadas. Nove meses depois, a grande reviravolta prometida na campanha eleitoral ainda não aconteceu. A reforma que visa dar nacionalidade a 11 milhões de imigrantes ilegais, muitos dos quais considerados trabalhadores essenciais durante a pandemia, dorme o sono dos justos em um Congresso ainda controlado pelos democratas, por causa da rejeição republicana. A reconstrução do sistema de asilo e de refugiados está progredindo muito lentamente enquanto o Governo mantém as medidas expressas de deportação instituídas por Donald Trump. A principal mudança foi cosmética. A realidade mostra que Biden e Trump têm mais coincidências do que o esperado em uma questão vital para as eleições de meio de mandato em 2022.
O presidente Biden disse neste fim de semana que as famílias separadas na fronteira durante o mandato de Trump merecem uma compensação. “Se você perdeu um de seus filhos na travessia da fronteira por causa do comportamento ultrajante da Administração anterior, legal ou ilegalmente, você merece uma indenização. Não importa a circunstância”, disse o presidente. O Wall Street Journal revelou que o Departamento de Justiça negocia o pagamento de até 450.000 dólares (2,49 milhões de reais) por pessoa em quase mil processos iniciados por imigrantes detidos em 2018. A agência Associated Press indicou que o valor será menor. Biden negou na quarta-feira da semana passada a existência dessa negociação, duramente criticada por onze senadores republicanos, que exigiram desfazer o suposto acordo descrito como “ridículo” por Mitch McConnell, o líder da minoria no Senado.
A notícia é o penúltimo aceno da Administração Biden a uma comunidade castigada nos dias de Trump e que ainda aguarda sua primeira grande reivindicação. O otimismo das organizações de direitos dos imigrantes diminuiu gradualmente pela falta de resultados de um Governo que prometeu uma mudança humanista da doutrina de linha dura. “O Governo está chegando a um ponto de definição em que deve resolver se se alinhará com os grupos e indivíduos que apoiaram a chegada dos democratas à Casa Branca ou se deseja satisfazer um pequeno grupo de republicanos que quer continuar com as políticas prejudiciais aos imigrantes”, diz Margaret Cargioli, advogada do Immigrant Defenders Law Center.
Cargioli diz que “as crianças arrancadas dos braços de suas mães no Governo Trump são as mesmas que a Administração Biden está jogando de volta para o México e outros países”. Os democratas deixaram em vigor o Título 42, medida emergencial que Trump instituiu em março de 2020, no início da pandemia, e que permite deportar rapidamente quem entrar no país ilegalmente.
Essa tem sido uma ferramenta útil para o Governo Biden desafogar a fronteira com o México, um ponto de conflito pelo grande fluxo imigratório que deixou cifras recordes desde sua chegada à Casa Branca. As autoridades detiveram 1,7 milhão de pessoas desde setembro do ano passado, o maior número já registrado. Desse total, 61% foram expulsas de imediato graças à medida emergencial, que foi criticada pelo diretor do Instituto Nacional de Alergias e Doenças Infecciosas, Anthony Fauci, e considerada ilegal por um tribunal. “A Administração, em vez de respeitar essa decisão, recorreu e a deixou em vigor”, diz Cargioli. A Casa Branca não respondeu aos pedidos de entrevista deste jornal.
A polêmica medida causa desconforto dentro do Governo. Harold Koh, um veterano conselheiro do Departamento de Estado que também serviu sob a presidência de Barack Obama, deixou o cargo com duras críticas, dizendo que considerava o Título 42 uma política “desumana”, “ilegal” e indigna. A renúncia foi somada à saída de Daniel Foote, enviado especial de Washington ao Haiti, após as imagens que circularam no mundo do tratamento dado pelos agentes da Patrulha de Fronteira aos haitianos em Del Rio (Texas). Kamala Harris, agora vice-presidenta dos Estados Unidos, foi uma das principais opositoras do Título 42 enquanto estava no Senado.
Jean Guerrero, uma analista do Los Angeles Times especialista em imigração, acredita que Donald Trump e assessores extremistas como Stephen Miller continuam a moldar a política de imigração. “Eu esperava que o Governo Biden tivesse uma narrativa contraria igualmente forte sobre os perigos do extremismo e da xenofobia, mas eles não vêm fazendo um bom trabalho. Acreditam que se forem moderados e não fizerem muito barulho, nem chamarem a atenção para a situação na fronteira, isso será suficiente para tranquilizar os republicanos”, diz a autora de Hatemonger, livro sobre a linha radical promovida por Miller. “As fronteiras estão tão fechadas como com Trump, a única diferença é que não estão expulsando crianças. Mas todas as noites os nativistas estão na Fox News chamando Biden de presidente de fronteiras abertas”, acrescenta.
“Os democratas não garantem nenhuma vitória importante para os imigrantes há décadas”, diz Guerrero, que considera este momento excelente para a reforma que deixaria na legalidade 11 milhões de pessoas. “É preocupante porque acho que não vai ser feita. Pode demorar mais de uma década se não for feita agora”, afirma a analista. A última grande anistia para os indocumentados foi aprovada durante o mandato de um republicano, Ronald Reagan. Durante o Governo Biden, porém, diminuiu de modo considerável o número de prisões feitas no interior do país pela polícia de imigração (ICE, na sigla em inglês). Foram 72.000 no ano fiscal de 2021. Durante o mandato de Trump, a média era de cerca de 148.000 por ano.
Biden tem este mês a oportunidade de fazer um novo aceno a seus eleitores e à comunidade latina. O Governo negocia o futuro do ‘Fique no México’, outra iniciativa polêmica inaugurada por Trump em 2019 que obrigou os requerentes de asilo a aguardar a resolução de seus processos ao sul do Rio Grande. Essa política, conhecida como Protocolo de Proteção ao Imigrante, reduziu as travessias de fronteira em 75%. O Governo democrata tentou desmantelar o programa com um memorando, mas uma decisão da Suprema Corte em agosto decidiu que deve ser retomado porque seu encerramento não foi suficientemente justificado.
Alejandro Mayorkas, secretário de Segurança Interna, tentou a sorte no final de outubro com uma nova diretriz que quer pôr um ponto final nisso. O secretário reconheceu que o programa reduz os fluxos migratórios, mas o faz “impondo custos humanos substanciais e injustificáveis” às pessoas que esperam no México. Um tribunal terá que avaliar essa nova determinação. O Governo diz estar pronto para voltar a operar o programa a partir de meados de novembro em solo mexicano, ao que se opõe o Governo de Andrés Manuel López Obrador.
O desencanto dos latino-americanos com as promessas quebradas de Biden pode custar caro para os democratas. O voto hispânico foi decisivo nas eleições do ano passado. Representou 10,6% do apoio, um aumento de 1,4% em relação a 2016, de acordo com informações do censo. Dois terços votaram na chapa de Biden e Harris, apoio decisivo em Estados muito disputados como Arizona, Geórgia e Nevada. E já há sinais de esgotamento nesta comunidade. A aprovação do presidente caiu quase 20 pontos entre os latinos, de 60% em maio para 49%. Apenas 2 em cada 10 hispânicos estão satisfeitos com o que Biden realizou em imigração, de acordo com uma pesquisa da Economist/YouGov. Os 80% restantes ainda aguardam resultados.
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