Corte Suprema da Argentina: um poder em ebulição

A traumática eleição do seu novo presidente e uma renúncia inesperada põem o principal órgão judiciário do país no olho do furacão político

Os juízes da Corte Suprema da Argentina Ricardo Lorenzetti (à esquerda), Elena Highton de Nolasco (demissionária), Carlos Rosenkrantz, Juan Carlos Maqueda e Horacio Rosatti (recém-eleito presidente do tribunal).CIJ

A Argentina tem um problema com sua Corte Suprema. O principal tribunal do país, cabeça de um dos três poderes do Estado, está sendo agitado por disputas fratricidas entre seus integrantes, numa conflitiva escolha do novo presidente da corte e numa inesperada renúncia que a deixou com apenas quatro integrantes. Há décadas a Corte Suprema argentina é tratada com descrédito. Da “maioria automática” da década de noventa, quando as sentenças eram redigidas ao gosto do Governo de turno, passou por uma reforma auspiciosa durante o kirchnerismo, no começo da década de 2000 – mas o ruído político desde então voltou a afundar sua reputação.

A composição da Corte Suprema é um assunto extremamente sensível na Argentina, porque ali terminam, cedo ou tarde, os casos de corrupção dos altos escalões governamentais. Por isso os políticos prestam muita atenção às divisões internas. No último dia 23, o tribunal já havia sido notícia por uma apressada e sucinta sucessão no seu comando. Naquele dia, o juiz Horacio Rosatti substituiu Carlos Rosenkrantz com três votos: o de seu predecessor, o de outro juiz – Juan Carlos Maqueda – e o seu próprio. Os outros dois juízes da corte, Ricardo Lorenzetti e Elena Highton de Nolasco, marcaram seu desacordo ausentando-se da votação. A crise sucessória ainda não havia sido resolvida quando Highton de Nolasco renunciou sem aviso prévio, deixando o plenário com apenas quatro integrantes. O caso da única mulher no tribunal era particular: tinha ultrapassado os 75 anos de idade, que a Constituição impõe como limite aos ministros da Suprema Corte, e se mantinha no cargo graças a uma autorização especial.

Quando Highton de Nolasco fez as malas, o jornal Clarín, o de maior tiragem da Argentina, manchetou que o Governo tinha perdido “seu único voto na Corte”. O presidente Alberto Fernández perguntou então com ironia a quem pertenciam “os quatro votos restantes”, numa instituição que, se supõe, deve ser independente da política. Lorenzetti, aliado de Highton de Nolasco e presidente da Corte entre 2007 e 2018, deu uma série de entrevistas onde não escondia a magnitude da crise: denunciou que o tribunal estava sendo prejudicado por “revelações” internas. Ou seja, que se o normal é que os juízes “falem por suas sentenças”, os vazamentos de dentro do próprio tribunal estavam se tornando “um problema que gera confusão” na sociedade. Lorenzetti não fala só por falar: há duas semanas, ele tentou recuperar a presidência,a qual, segundo sua leitura, foi arrebatada dele há três anos pelo Governo de Mauricio Macri. Quando se tornou evidente que não conseguiria bloquear Rosatti, simplesmente não votou.

“A Corte está cindida”, adverte o constitucionalista Andrés Gil Domínguez, “e isso pode afetar a seu funcionamento ou torná-lo mais complexo”. “Esta Corte é muito maleável”, acrescenta um juiz federal que prefere não se identificar. “Veio sendo assim até agora. Rosenkrantz é claramente opositor [ao kirchnerismo], os outros não”, acrescenta essa fonte. Marcelo Galle, presidente da Associação de Magistrados, prefere falar em “diferenças” mais que em “fratura”. “Em um corpo associado há diversidade de opiniões, e seus integrantes têm posturas e as defendem”, diz.

A história da Corte argentina desde a retomada da democracia, em 1983, é de uma tensão permanente entre independência e submissão ao poder político. Na década de 1990, o então presidente Carlos Menem ampliou o número de juízes de cinco para nove, formando o que, com ironia, se batizou de “maioria automática” de cinco contra quatro. Em 2002, com o país mergulhado na mais grave crise econômica da sua história, o Congresso aprovou o impeachment de seis dos nove integrantes daquele tribunal entregue ao menemismo. Um ano depois, o presidente Néstor Kirchner estabeleceu por lei um sistema de eleição mais participativo e transparente para os juízes da Suprema Corte. Em 2006, o número foi novamente reduzido a cinco ministros. Entretanto, os vícios voltaram, e as tensões entre juízes e poder político estão outra vez à flor da pele.

Às ambições e disputas entre os juízes soma-se agora a necessidade de escolher um sucessor para Highton de Nolasco. O Governo está a um mês e meio de cruciais eleições legislativas, nas quais pode perder o controle do Senado. A iminência de uma derrota esticou a corda na coalizão peronista governante. Não é hora para acordos. “Dentro da margem de manobra que corresponde ao Presidente, todos supomos que aparentemente será uma mulher”, diz Galle, da Associação de Magistrados. Há consenso, porém, de que o novo nome demorará a surgir. Gil Domínguez diz que “com a divisão política que existe é difícil pensar em uma substituição em curto prazo”. “Ou encontram um candidato de muito consenso, ou talvez surja a opção de ampliar a Corte”, argumenta.

A ampliação do número de ministros é o combustível de longas disputas. A Argentina já teve uma Corte de nove, outra de sete e a atual de cinco. “A de sete membros funcionou muito bem, e com cinco também. O menemismo a ampliou para nove e não temos uma boa lembrança, porque foi a Corte da maioria automática, foi um escândalo”, recorda o constitucionalista Jorge Vanosi. “É a menor Corte Suprema da América Latina junto com a do Uruguai. Há fatores relacionados com a pluralidade ideológica, a diversidade de gênero, que a ampliação permitiria solucionar”, opina Gil Domínguez.

A vice-presidenta Cristina Fernández de Kirchner defende a ideia de ampliar o número de integrantes da Corte, que vê como inimiga do Governo. Em uma carta publicada dias depois da derrota governista nas eleições primárias de setembro passado, ela acusou os juízes do mais alto tribunal argentino de “condicionarem ou extorquirem” o Executivo para complicar a gestão econômica e de exercer uma perseguição judicial contra dirigentes governistas. A Corte tem atualmente em sua pauta a análise de 17 recursos apresentadospor Fernández de Kirchner em três processos nas quais é acusada de corrupção. As mudanças na Corte, contudo, estão condicionados pelo Congresso, onde o Governo não tem os votos necessários para avançar. As mudanças que a vice-presidenta anseia ainda terão que esperar.

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