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Boris Johnson ‘estaciona’ temporariamente o Brexit para interromper a crise dos caminhoneiros

Governo britânico abre chave para contratação de motoristas da União Europeia, para evitar que a escassez estrague o Natal

Vista aérea de uma fila de veículos em um posto de gasolina no leste de Londres, neste sábado.
Vista aérea de uma fila de veículos em um posto de gasolina no leste de Londres, neste sábado.DANIEL LEAL-OLIVAS (AFP)
Rafa de Miguel

O Brexit era a promessa de retomar o controle das fronteiras —take back control, no slogan usado em inglês— e preservar empregos e benefícios sociais para os britânicos. Diante do desastre político de longas filas de motoristas em postos de gasolina ou prateleiras vazias de supermercados, o primeiro-ministro Boris Johnson optou por colocar a ideologia de lado por um tempo e apostar no pragmatismo, mesmo que envolva algum constrangimento. Johnson aprovou a concessão temporária de 5.000 vistos para caminhoneiros da União Europeia (UE) trabalharem no Reino Unido. E outros 5.000 para que a indústria britânica de carnes possa recontratar trabalhadores comunitários —principalmente da Europa Oriental— e levar suas fábricas de processamento a plena capacidade.

Será uma solução para os próximos seis meses. O suficiente, calcula Downing Street, para que o Natal não termine como um desastre, ameaçando a estabilidade do Governo conservador. Ao longo de toda sexta-feira e sábado, milhares de motoristas abarrotaram postos de gasolina em todo o país para estocar combustível. O apelo do Governo à calma, incapaz de conter o sentimento de pânico, não serviu a nenhum propósito. Alguns meios de comunicação chegaram a mostrar fotos de usuários enchendo latas de gasolina após terem enchido o tanque de seus veículos. Dos mais de 8.000 postos espalhados pelo Reino Unido, apenas 1% (cerca de 80) teve que fechar algumas das suas bombas por falta de algum tipo de combustível. A BP suspendeu completamente o serviço em apenas 20 de suas lojas. Mas foi impossível conter os nervos de milhares de cidadãos, que se lançaram para reabastecer.

A causa desses problemas de abastecimento não é a falta de gasolina. Há de sobra. Em vez disso, reside na falta de motoristas de caminhão para transportar o combustível até os pontos de reabastecimento. A indústria de transporte britânica estima em 90.000 o número de motoristas necessários para manter as coisas funcionando sem problemas. Cerca de 50.000 pessoas deixaram seus empregos durante a pandemia, seja porque se aposentaram ou porque escolheram outra profissão. Além disso, cerca de 20.000 motoristas da UE voltaram aos seus países.

A nova lei de imigração, aprovada imediatamente após o Brexit, estabelece um sistema de pontos para entrar no Reino Unido. Os cidadãos da Comunidade Europeia já não têm prioridade sobre os do resto do mundo. E as cotas temporárias de contratação —principalmente para os setores de saúde e agropecuária— têm sido escassas e de alcance limitado. Essa excepcionalidade nunca foi contemplada para as transportadoras, como o Governo Johnson agora pretende fazer. E nem todo o setor está convencido de que a solução dos vistos temporários, reduzidos e atrasados, seja a correta. “Acho que o que estamos vendo tem a ver acima de tudo com o nível salarial dos motoristas”, explicou à BBC Toby Ovens, diretor administrativo de uma das principais empresas de transporte e logística do Reino Unido, a Broughton Transport Solutions. “As margens no setor de transporte estão muito apertadas e você não tem dinheiro para aumentar os salários sem que isso não tenha impacto no preço que será repassado aos clientes”, diz Ovens.

Essa foi a batalha ideológica desencadeada dentro do Governo Johnson. Muitos de seus ministros, começando pelo de Transporte, Grant Shapps, mas especialmente o do Interior, Priti Patel —campeã da ala dura do Partido Conservador—, se recusaram a dar o braço para torcer com os vistos. Primeiro, porque um dos objetivos da Lei de Imigração de Downing Street era forçar a indústria britânica a treinar e contratar cidadãos nacionais e acabar com décadas de baixa produtividade e baixos salários por contratar trabalhadores comunitários. Por isso, a primeira resposta do Governo à crise dos caminhoneiros —que, aliás, atinge toda a Europa— foi agilizar os processos de exames para obtenção da licença para dirigir veículos pesados e exigir salários mais atrativos das transportadoras. Foi inútil. Mas, acima de tudo, o cabo de guerra, combinado com manchetes contínuas nas filas dos postos de gasolina e prateleiras vazias, deixou Boris Johnson muito nervoso. Tendo acabado de retornar de sua viagem aos Estados Unidos na sexta-feira, ele reuniu seus ministros com urgência e exigiu uma solução para o problema. Qualquer coisa menos chegar ao Natal com uma situação que lembra, ainda que remotamente, o Inverno do Descontentamento em 1978, que derrubou um Governo trabalhista e abriu as portas para a Década Thatcher.

A principal associação de empregadores do Reino Unido, a Confederação da Indústria Britânica (CBI), que vem alertando há meses sobre a escassez de mão de obra em muitos setores-chave —principalmente transporte, agricultura e hospitalidade— celebrou como uma vitória a decisão de Johnson. “É uma vergonha que o Governo teha precisado ver filas nos postos de gasolina para tomar uma decisão”, disse Tony Danker, CEO da CBI. “Basicamente, o Governo pensava que, depois do Brexit, teríamos um sistema de imigração que permitiria a entrada de trabalhadores com as habilidades de que precisamos, não o resto. E agora ele percebeu que de algumas das habilidades descartadas também precisamos, embora sazonalmente “, explicou Danker à BBC.

As próximas semanas mostrarão se a solução escolhida alivia a crise de transporte ou se Johnson renunciou temporariamente à sua principal bandeira ideológica, o Brexit, em vão.

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