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Com prateleiras vazias e sem trabalhadores, covid-19 e Brexit agravam crise de abastecimento no Reino Unido

Os empresários pedem ao Governo de Boris Johnson que seja flexível e mude as novas normas de imigração

Estantes vazias num supermercado de Nine Elms, na zona sul de Londres (Reino Unido), em 22 de julho.
Estantes vazias num supermercado de Nine Elms, na zona sul de Londres (Reino Unido), em 22 de julho.JUSTIN TALLIS (AFP)
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Desde a triste década de setenta, que acabou provocando a chegada do neoliberalismo de Margaret Thatcher, não era habitual que os consumidores do Reino Unido —que disputa com a França o posto de segunda maior economia europeia— recebessem pedidos de desculpas por um descumprimento contratual, nos seguintes termos: “Prezado cliente, o serviço de entrega para o seu código postal foi suspenso durante dois dias para que nosso armazém possa aliviar o atraso acumulado. O aumento de demanda e a escassez de motoristas levaram a esse acúmulo”. Não foi o primeiro e-mail com estas características que chegou à conta de Daniel Juliá, um espanhol radicado em Londres há décadas e que mantém, junto com um sócio, uma empresa de distribuição de material de hotelaria e outra de distribuição de gelo. “Para a distribuição do gelo precisamos de pelo menos 12 motoristas. Se algum deles falhar, tenho um sério problema, porque é complicadíssimo encontrar um substituto atualmente.”

Seu problema, numa escala reduzida, é o mesmo que afeta atualmente todo o Reino Unido, levando a rede portuguesa de restaurantes Nando’s, especializada em pratos de frango e muito popular entre os ingleses, a fechar alguns de seus estabelecimentos por não dispor de matéria-prima suficiente. Também no McDonald’s faltam shakes e outras bebidas engarrafadas, e a rede de pubs Weatherspoon ficou sem algumas marca de cerveja. Grandes supermercados, como os Sainsbury’s, se empenham nos últimos dias em driblar a escassez de suas ofertas habituais, refletidas nas gôndolas vazias. A Coca-Cola informou que suas engarrafadoras da Inglaterra, Escócia e Gales ficaram sem latas de alumínio.

A nova Lei de Imigração, em vigor desde fevereiro do ano passado, restringiu ainda mais o acesso dos cidadãos europeus ao mercado trabalhista britânico e coincidiu com o início de uma pandemia que obrigou a concentrar todos os esforços na sobrevivência das empresas. Os planos para ajustar as necessidades trabalhistas ao novo esquema de residência definido entre Londres e a UE, permitindo assim a permanência dos trabalhadores previamente contratados, ficaram congelados. “Desde então, muitos de nossos membros nos descrevem uma tempestade perfeita que alterou todo o seu processo de transformação”, afirma a CBI, principal entidade patronal do Reino Unido. “Além de a pandemia ter interrompido sua capacidade de se preparar e se adaptar ao novo sistema de imigração, levou também muitos trabalhadores comunitários a irem embora do país para ficarem mais perto de suas famílias”, indica.

Caminhões com mercadoria pesada na área de descanso de Cobham (Reino Unido), em 31 de agosto.
Caminhões com mercadoria pesada na área de descanso de Cobham (Reino Unido), em 31 de agosto. PETER CZIBORRA (Reuters)

E muitos dos que fugiram de um Reino Unido paralisado durante meses pelo vírus —o Escritório Nacional de Estatística os estimou em mais de um milhão ao longo de um ano— fizeram-no sem regularizar previamente sua situação. Conclusão: sua volta agora se tornou um confuso trâmite pelo qual a empresa deve solicitar o visto, demonstrar que suas necessidades se ajustam às contempladas pela nova Lei de Imigração, ou que a oferta de trabalho supera os 185.000 reais por ano.

A CBI calcula que o Reino Unido precisaria de pelo menos 100.000 caminhoneiros adicionais para paliar os crescentes problemas de desabastecimento. E esse não é o único buraco. Faltam trabalhadores capazes de manejar maquinário pesado, e também transportadores de trajeto curto. Falta pessoal para as fábricas de processamento de alimentos, para cuidar do gado e para colher frutas, hortaliças e flores. Não há balconistas para as lojas, operários para os armazéns, pessoal de limpeza para hotéis e escritórios. Nem carpinteiros, nem eletricistas; nem engenheiros mecânicos nem trabalhadores para unidades de montagem. “Chegou aos nossos ouvidos o caso de empresas que restringem artificialmente sua capacidade porque são incapazes de satisfazer a alta demanda. É o caso, por exemplo, dos hotéis que estão limitando o número de quartos que reservam porque não têm pessoal suficiente de limpeza nem podem dispor do serviço de lavanderia suficiente”, afirma o relatório elaborado pela CBI.

O Governo de Boris Johnson reluta em admitir que seu principal feito político, o Brexit, pode provocar danos irremediáveis à economia do país, ao menos em médio prazo. A resposta da ministra do Interior, Priti Patel, com um discurso de extrema dureza contra a imigração, é que os empresários se esforcem em formar, preparar e contratar a cidadãos britânicos. No caso dos caminhoneiros, os exames de habilitação, que haviam ficado muito demorados devido às restrições pela pandemia, agora estão sendo acelerados. Mas não se atendeu a reivindicação dos empresários para que fosse autorizada a volta temporária de todos os motoristas romenos, poloneses, portugueses ou espanhóis que poderiam aliviar uma situação de estresse que ameaça causar novas cenas de prateleiras vazias durante o período natalino.

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“Tudo isto vai durar mais do que as pessoas acreditam”, prevê Andrew Sentance, um reputado economista que assessora a empresa de análises Cambridge Econometrics e foi consultor externo do Banco da Inglaterra. “A falta de trabalhadores formados pode se prolongar durante anos. O impacto que o Brexit teve sobre nossa capacidade de obter mão de obra da UE permanecerá. E o processo de formação do pessoal se viu alterado pela pandemia, porque as pessoas não trabalhavam e se encontravam de licença remunerada”, prossegue Sentance.

As principais instituições econômicas do Reino Unido, assim como os grandes partidos políticos (especialmente o Trabalhista, agora na oposição), decidiram deixar para trás os longos anos de tensão em torno do Brexit e tratar a decisão como um fato consumado. Isso não significa que, sutilmente, não continuem apontando as consequências negativas da decisão de deixar a UE. O presidente do Banco da Inglaterra, Andrew Bailey —que escreveu em um relatório que a tensão na cadeia de suprimentos e a elevação do preço de algumas matérias-primas iriam diminuir com o tempo— não pôde ocultar sua preocupação com a escassez de mão de obra. “Outros terão uma opinião diferente, mas não posso deixar de começar a me preocupar com esta persistência no mercado trabalhista”, afirmou Bailey na quarta-feira à Comissão de Economia da Câmara dos Comuns (deputados).

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