Presidente da Tunísia assume plenos poderes em meio aos protestos e abre uma crise constitucional
Partido conservador de tendência islamista, o Ennahda, questiona a legalidade da decisão do mandatário e a considera um “golpe de Estado”
O presidente tunisiano, Kaïs Saied, aproveitou a conjunção de crise pela que atravessa o país para suspender as atividades do Parlamento e demitir o primeiro-ministro, Hichem Mechichi, com quem tinha atritos desde janeiro. Saied, um político populista eleito em 2019 com mais de 70% dos votos, justificou seu golpe de força com uma duvidosa interpretação do artigo 80 da Constituição, que permite ao presidente tomar “medidas excepcionais” no caso de uma situação de emergência. O Ennahda, o maior partido do Parlamento, chamou de “golpe de Estado” uma decisão que coloca a Tunísia em uma crise constitucional sem precedentes, e a transição democrática em seu momento mais delicado.
Watch: Here are the 3 presidential decisions as announced by #Tunisia’s Kais Saied following a day of mass protests against the government and the Islamist Ennahda-led parliament:https://t.co/mPjizWekJo pic.twitter.com/8Q21EGIpIb
— Al Arabiya English (@AlArabiya_Eng) July 25, 2021
A inesperada jogada de Saied vem após um dia de protestos antigovernamentais que pediam a dissolução do Parlamento e uma profunda reforma do sistema político. Na capital, os protestos, convocados na internet por grupos civis e que não tinham o apoio de nenhum partido de peso, foram dispersados pela polícia na capital diante da sede da Assembleia Popular. Em diversas cidades, como Susa e Tozeur, os manifestantes invadiram a sede do Ennahda e destruíram o local. Desde a Revolução de 2011, o Ennahda esteve presente em maior e menor grau em todos os Executivos, de modo que é visto como a quintessência do establishment por muitos tunisianos.
Após o anúncio de Saied, transmitido pela televisão pública pouco depois das 21h30 (hora local), milhares de pessoas saíram às ruas para mostrar seu apoio ao presidente buzinando em seus carros e agitando bandeiras tunisianas. A comemoração foi permitida pela polícia apesar do toque de recolher em vigor das 20h às 5h da manhã, uma das medidas adotadas pelas autoridades para conter a explosão de infecções de covid-19. Os hospitais do país estão lotados, e muitos deles não têm oxigênio suficiente para fornecer aos pacientes com covid. Em um país de 11 milhões de habitantes, as mortes registradas pelo novo coronavírus oscilam por volta de 200.
Forças Armadas
O presidente fez um discurso muito duro, com um tom desafiador. “Muita gente foi enganada pela hipocrisia, a traição e o roubo dos direitos do povo... Alerto qualquer um que pense em recorrer às armas... quem disparar uma bala, as Forças Armadas responderão com balas”, disse elevando a voz e com semblante muito sério. Por enquanto, o único partido que condenou de modo contundente a decisão de Saied foi o Ennahda. Seu líder histórico e presidente do Parlamento, Rachid Ghannouchi, acusou o Chefe de Estado de lançar um “golpe contra a Revolução e a Constituição”. “Considerem que as instituições ainda estão funcionando, os seguidores do Ennahda e o povo tunisiano defenderão a Constituição”, afirmou Ghannouchi à agência Reuters. O mandatário também anunciou a retirada imediata da imunidade parlamentar de todos os deputados “para recuperar a paz social e salvar o Estado e a sociedade”.
Más y más coches se acercan a la Avenida Bourguiba, corazón de la capital, para celebrar la asunción de todos los poderes por parte del presidente Saied. Las imágenes de esta noche reforzarán su posición en las negociaciones que vendrán. pic.twitter.com/lfen869X1W
— Ricard Gonzalez (@RicardGonz) July 25, 2021
“Estou muito feliz. Saied nos salvou da irmandade do Ennahda. Já era hora de agir”, comenta Jamila, uma mulher de meia idade que caminhava na noite de domingo pelo centro de Túnis envolta em uma bandeira tunisiana. “Não, não me preocupa que Saied possa se transformar em um ditador. Até Hitler seria melhor do que o Ennahda”, diz. Mesmo sendo minoria, entretanto, alguns receiam o golpe de força de Saied. “Estou preocupado. Não acho que um golpe de Estado e um presidente que se dê todos os poderes possam solucionar os problemas que temos”, afirma sentado em um café semiaberto Wael, um jovem de esquerda que se envolveu profundamente com a Revolução. O cliente da mesa ao lado o repreende: “Isso não é um golpe de Estado! É o presidente eleito!”, proclama, abrindo um debate que, muito provavelmente, agitará o país nos próximos dias.
A possibilidade de que o presidente Saied utilizasse o artigo 80 da Constituição para assumir plenos poderes já havia sido sugerida por um assessor em um relatório vazado em maio. Causou forte polêmica na época, e o presidente se afastou publicamente da iniciativa. Por essa razão, nas horas anteriores à ação de Saied ninguém poderia prever esse desenvolvimento dos acontecimentos.
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O recurso do artigo 80 havia sido defendido por alguns seguidores de Saied como uma forma de sair da crise política pela que passa o país desde janeiro. O conflito começou após o chefe de Estado se negar a sancionar a nomeação dos novos ministros em uma remodelação do Executivo decidida pelo primeiro-ministro, Hichem Mechichi. A Constituição não dá ao presidente o poder de vetar a remodelação do gabinete, mas pela ausência de um Tribunal Constitucional pela falta de quórum na nomeação de seus membros, ninguém pode obrigá-lo a fazê-lo. Desde então, o país está afundado na paralisia política.
A combinação de crise vivenciada pelo país―a sanitária se somou à econômica, social e política anteriores―fez explodir a insatisfação entre a população. A eleição de Saied, um veterano professor de Direito Constitucional sem experiência política, já foi produto da insatisfação popular e da falta de confiança na classe política. Dois anos depois, a irritação dos tunisianos com o Governo é ainda maior, o que abriu uma janela de oportunidade ao presidente para confirmar seu predomínio. Em parte, o sucesso do movimento de Saied dependerá da reação dos outros atores políticos e dos países ocidentais, cujo apoio foi fundamental para que o país não caísse na bancarrota.
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