Chilenos castigam partidos políticos na eleição de parlamentares que decidirão nova Constituição
Candidatos independentes alcançam uma representação surpreendente na assembleia de 155 membros, enquanto a direita e a centro-esquerda sofrem uma grande derrota
A assembleia que redigirá a nova Constituição do Chile, a partir do mês que vem, será marcada pela diversidade e pela pouca influência dos partidos tradicionais e das grandes coalizões. Com quase 90% das urnas apuradas, os candidatos independentes se encaminham para ocupar 30 dos 155 assentos na Convenção Constitucional, o que ninguém esperava. A direita ligada ao presidente Sebastián Piñera sofreu uma forte derrota e, apesar da coligação com o Partido Republicano, de extrema direita, não conseguiu eleger nem um terço do plenário, quota necessária para poder negociar as normas da nova Constituição. Esse piso é de 52 assentos, e o bloco teria elegido apenas 39 bancos, segundo a apuração preliminar. A centro-esquerda, unida na chapa Aprovo ―que aglutina boa parte da aliança Concertação, que governou o Chile entre 1990 e 2010―, teria elegido 25 constituintes, menos inclusive que outra lista da esquerda, a Aprovo Dignidade, composta pelos comunistas e a Frente Ampla, que ficaria com 28 constituintes.
Além dos membros da Convenção Constitucional, os chilenos elegeram neste fim de semana também seus governadores, prefeitos e vereadores. Mas o voto nos constituintes era mais relevante, por suas implicações no destino do país: os 155 membros da convenção terão em suas mãos a redação da nova Carta Fundamental, que substituirá a vigente, nascida em 1980, na ditadura de Augusto Pinochet, e que já acumula cerca de 50 reformas datadas na sua maioria do final do regime militar (1988) e do Governo de Ricardo Lagos (2005). Quando em outubro de 2019 a eclosão social pôs a democracia chilena contra as cordas, a classe política ofereceu o caminho constituinte como a única via para canalizar institucionalmente as demandas sociais.
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Clique aquiA Convenção Constitucional será diversa, por isso se prevê que selar acordos seja complicado. As estimativas das semanas prévias indicavam que os independentes obteriam entre 8 e 16 assentos, dadas as dificuldades para obter quotas em um sistema que privilegiava as listas dentro dos partidos. Contra isso, muitos candidatos sem militância partidária optaram por se apresentar com o respaldo de diferentes coletivos, razão pela qual a quantidade de convencionais sem subordinação a partidos e coalizões poderia ser inclusive maior.
“Os cidadãos nos enviaram uma mensagem clara e forte, tanto ao Governo como a todas as forças políticas tradicionais: não estamos sintonizando adequadamente com suas demandas e desejos”, disse o presidente Sebastián Piñera no palácio de La Moneda, cercado por seu Gabinete. A direita sofreu uma ferida profunda. Não só não alcançou um terço da convenção, o que a deixa em uma situação impossível, como também perdeu municípios importantes, tais quais Maipú, Estación Central e Viña del Mar. O Partido Comunista, enquanto isso, lhe arrebatou a prefeitura de Santiago, a de maior simbolismo.
As eleições transcorreram impecavelmente, como já é tradição no país sul-americano. Cerca de 14,9 milhões de cidadãos foram convocados para eleger os 155 redatores da nova Constituição, que comporão um órgão paritário entre homens e mulheres e com 17 assentos reservados aos povos indígenas. Foi uma votação complexa, com quatro votos (constituintes, governadores, prefeitos e vereadores) e uma grande quantidade de candidatos. Pela primeira vez, além disso, um país da América Latina programou duas jornadas de votação, no sábado e domingo, devido à pandemia de covid-19, o que mudou os hábitos dos eleitores, acostumados a votarem sempre num domingo. No sábado, as urnas ficaram sob a vigilância das Forças Armadas e do Serviço Eleitoral (Servel), sem registro de incidentes.
A adoção de uma nova Constituição foi a resposta da classe política à população frente às revoltas de 2019, por isso uma baixa participação do eleitorado simbolizaria uma reduzida adesão popular a essa saída institucional. De acordo com as projeções, cerca de 40% do eleitorado teria votado. É preciso se levar em conta o contexto adverso: no meio de uma pandemia com 37.617 casos ativos, com uma crise econômica que dificulta inclusive o pagamento do transporte público para comparecer a locais que muitas vezes ficam longe dos domicílios, o adiamento desta eleição (que estava programada originalmente para abril) e a dificuldade própria de um processo com quatro votações simultâneas.
A baixa participação preocupa autoridades e especialistas, sobretudo com o objetivo de dar legitimidade do processo constituinte, que reordenará o Chile. Trata-se da eleição mais importante na história recente do país, e houve uma oferta de candidatos como nunca antes. Em um contexto de baixa legitimidade dos partidos tradicionais, 68% dos candidatos à convenção não militam em nenhuma formação. O percentual de vacinados, enquanto isso, não tem comparação na América Latina. Até sexta-feira, 9.006.139 pessoas tinham sido vacinadas com a primeira dose e 7.457.662 com as duas doses, ou seja, 49,1% da população-alvo. A partir desta segunda-feira será retomada a imunização dos maiores de 30 anos saudáveis.
“Independentemente dos resultados, o importante é que haja um bom nível de participação, idealmente não inferior a 51% [similar o referendo de outubro sobre a convocação da Constituinte], com uma boa distribuição geográfica, segundo níveis socioeconômicos”, opina Daniel Zovatto, diretor regional para a América Latina e o Caribe da organização intergovernamental IDEA Internacional, que analisou a realização das eleições em um contexto de pandemia. Para Zovatto, esta meta “não parece nada fácil”. “Tomara que seja alcançada, para dar uma boa base de legitimidade ao processo constituinte, porque a Constituição deve incluir todas e todos”, afirma o cientista político, para quem “o Chile deve considerar seriamente e com urgência reimplantar o voto obrigatório”.
Com o sufrágio voluntário adotado em 2012, a participação caiu de 87% em 1989 para um mínimo histórico de 36% nas penúltimas eleições municipais, em 2016. No referendo constitucional de outubro passado, onde 80% das pessoas optaram por mudar a Constituição vigente, a participação chegou a 50,91%. Apesar da importância do referendo de sete meses atrás, quase metade do eleitorado se absteve. Em termos gerais, entretanto, Zovatto destaca que o Chile levou adiante “uma inovação bem-sucedida na América Latina com a dupla jornada eleitoral consecutiva”.
Um dos aspectos preocupantes também é que a participação novamente foi mais baixa nos municípios pobres. Em La Pintana, ao sul da capital, a participação no sábado foi de apenas 13,69%. Em Vitacura, um dos mais ricos, chegou a 41,31%. Se o caminho constituinte não incluir os vulneráveis do Chile, muito dificilmente uma nova Constituição será a base do novo pacto social que o país sul-americano necessita.
Com a Convenção Constituinte que começará a funcionar em junho, o Chile se redefinirá em assuntos fundamentais. O órgão discutirá seu regime político e sistema de Governo, porque existe algum consenso de que o exacerbado presidencialismo chileno mostrou deficiências com as revoltas de outubro de 2019. Haverá um debate sobre descentralização e regionalização, em um Estado hoje unitário e fortemente centralizado na capital. Os 155 constituintes deverão ainda definir diferentes princípios relativos aos povos originários, como seu reconhecimento expresso na Constituição e a plurinacionalidade. É um tema central, dado os históricos problemas de relação entre o povo mapuche e o Estado chileno, que provocam uma escalada de violência na região da Araucanía. O órgão constituinte discutirá o modelo de desenvolvimento econômico, o destino de instituições como o Tribunal Constitucional, o modelo do Estado ―os direitos econômicos e sociais prometem gerar debates inflamados― e assuntos especialmente sensíveis para os mercados, como a autonomia do Banco Central.
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