Chile inicia uma mudança de era com eleição dos redatores da nova Constituição

Chilenos vão às urnas para escolher os responsáveis pela redação do texto que enterrará definitivamente a herança política da ditadura de Augusto Pinochet. Estes são os principais aspectos de uma jornada eleitoral histórica

Eleitor deposita seu voto em Santiago neste sábado.Esteban Felix (AP)

O Chile inicia um salto para um futuro completamente desconhecido. A Assembleia que os cidadãos elegerão neste final de seman terá por missão redigir uma nova Constituição sem condições prévias (exceto a manutenção da República) e para a qual não há prognósticos: o descrédito dos velhos partidos e a fragmentação política permitem qualquer resultado. A sociedade chilena se lança na grande mudança ainda crispada pelas fortes revoltas de 2019 e cansada depois de mais de um ano de pandemia. Os mercados financeiros, extasiados durante décadas com o modelo ultraliberal herdado do pinochetismo, olham com temor para o Chile.

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Em novembro de 2019, quando as ruas ferviam de raiva e não havia nada além de devastação urbana ao redor do Palácio de la Moneda, o presidente conservador Sebastián Piñera disse ao EL PAÍS que o Chile sofria “o mal-estar do sucesso”. Até certo ponto, tinha razão. Mas o sucesso macroeconômico (alto crescimento, contas públicas saneadas e enorme energia exportadora) havia sido alcançado sob as condições ultraliberais impostas pelo ditador Augusto Pinochet. A repetida ladainha do “sucesso chileno” acabou agudizando a percepção de que as desigualdades eram excessivas e que a suposta meritocracia não tinha alterado o domínio de uma pequena casta rica e poderosa.

Aquela explosão levou a isto, à atual situação de “página em branco”. O confinamento devido à pandemia sufocou a revolta, que os muito impopulares Carabineiros reprimiram dia após dia com extraordinária violência, mas o descontentamento permaneceu. E quando Piñera, inicialmente contrário à mudança da Constituição, convocou um plebiscito sobre o processo constituinte, 80% dos eleitores disseram “sim”. Apesar da importância da convocação, no dia 25 de outubro apenas metade dos eleitores inscritos votaram. O contexto de pandemia não foi a causa da alta abstenção, semelhante ou inclusive inferior à de eleições anteriores. A causa fundamental dessa endêmica baixa participação é o descrédito das instituições, do Congresso à Presidência, passando pela Corte Suprema e pelas forças policiais.

A primeira grande incógnita do processo que se abre neste fim de semana está na participação. Provavelmente será baixa para um desafio de tanta importância. Além disso, a votação é complexa. Os adiamentos devido à pandemia concentraram nesta votação de dois dias, sábado e domingo, a eleição dos 155 membros da Assembleia Constituinte, de 345 prefeitos, 2.240 vereadores e 16 governadores (até agora nomeados pelo poder central).

Pressionado pelos danos econômicos da pandemia e por um Congresso em que estava em minoria, o presidente Sebastián Piñera teve de autorizar por três vezes, muito a seu pesar, a retirada de dinheiro dos fundos de pensão. Isso aliviou a população, mas reduziu substancialmente o valor das futuras pensões. Da Frente Ampla (social-democrata) e de outros setores preconiza-se que o Estado recupere o dever de garantir, com recursos públicos, os direitos à aposentadoria, à saúde e à educação.

Além da grande incógnita sobre que tipo de Chile se constituirá durante os próximos nove meses (prazo que pode ser ampliado em mais três se o texto não for finalizado), abre-se a incógnita do excesso de expectativas. Uma nova Constituição, seja do tipo que for, não resolverá automaticamente os problemas de fundo da sociedade: a insatisfação geral refletida na revolta de 2019, a falta de integração dos povos originários, a desconfiança em relação às forças policiais e o enorme poder das famílias oligárquicas.

O Chile está saindo da pandemia, é o primeiro país latino-americano a fazê-lo. Mais da metade dos cidadãos recebeu a primeira dose da vacina e mais de um terço está totalmente imunizado. Não é possível saber se a redação constitucional será feita em um ambiente mais ou menos tranquilo ou se a vontade de pressionar os constituintes mais uma vez encherá as ruas de protestos.

A Assembleia Constituinte, à qual concorrem 1.178 candidatos em listas partidárias ou independentes, será pela primeira vez quase paritária (dado que terá 155 membros, homens ou mulheres terão maioria de um) e também pela primeira vez incluirá formalmente uma representação dos povos originários, como mapuches e aimarás: terão 17 parlamentares.

A ausência de condições prévias (exceto a manutenção da República, o respeito às decisões judiciais e aos tratados internacionais e a exigência de que cada artigo constitucional seja aprovado por uma maioria de dois terços) abre um imenso leque de possibilidades. Os povos originários, por exemplo, pedem que o Chile se defina como Estado plurinacional. O que mais preocupa a oligarquia econômica e os mercados financeiros, entusiastas do modelo ultraliberal consagrado na Constituição pinochetista de 1990, é, no entanto, a provável desintegração de um modelo em que quase tudo, do sistema de pensões à saúde e à educação, foi cedido à iniciativa privada.

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