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A quebra de patentes e outras medidas ‘radicais’ do moderado Biden

Apoio à liberação das vacinas é o último tabu quebrado pelo novo presidente dos Estados Unidos, que se apoia na urgência da crise e em sua lendária fama de moderação

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na tarde de sexta-feira nos jardins da Casa Branca antes de ir para Camp David.
O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na tarde de sexta-feira nos jardins da Casa Branca antes de ir para Camp David.JONATHAN ERNST (Reuters)
Amanda Mars
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Washington (United States), 07/05/2021.- US President Joe Biden speaks about the April jobs report in the East Room of the White House in Washington, DC on 07 May 2021. The US economy brought back far fewer jobs than estimated in April and the unemployment rate unexpectedly increased. (Estados Unidos) EFE/EPA/TASOS KATOPODIS / POOL
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“Os dólares dos contribuintes norte-americanos serão usados para comprar produtos norte-americanos com a finalidade de criar empregos norte-americanos. Assim é como se espera que deve ser e assim será nesta Administração”.

“Nossas existências de vacinas (...) se transformarão no arsenal de vacinas para outros países, do mesmo modo que os Estados Unidos foram um arsenal de democracia para o mundo, mas cada norte-americano terá acesso [a elas] antes de que isso ocorra”.

“Wall Street não construiu esse país, a classe média construiu esse país, e os sindicatos construíram a classe média. Por isso peço ao Congresso que aprove a lei de proteção do direito de organização e possamos apoiar o direito a se sindicalizar”.

“E, evidentemente, se estão pensando em me enviar coisas [leis] para assinar... Subamos o salário mínimo para 15 dólares (78 reais) [por hora]”.

As duas primeiras frases não saíram da boca de Donald Trump e as duas últimas não vieram do senador esquerdista Bernie Sanders, socialista declarado desde os anos setenta, quando os Estados Unidos associavam o termo ao comunismo (algo que, na verdade, ainda acontece em boa parte do país). São fragmentos do primeiro discurso de Joe Biden no Congresso como presidente dos Estados Unidos, coincidindo com os 100 dias iniciais de mandato que chocaram meio mundo.

O veterano político de Washington chegou ao Salão Oval na terceira tentativa, aos 78 anos e sob o rótulo de centrista irredutível, mas impulsionou a maior mudança de discurso econômico em décadas, com uma férrea defesa do Estado de bem-estar e do papel do Governo federal, quebrando no caminho tabus com seu apoio explícito à sindicalização dos trabalhadores de empresas concretas (Amazon), com a retirada das tropas do Afeganistão e, como fez na quarta-feira, à suspensão temporária das patentes das vacinas contra o coronavírus para universalizar seu uso.

Porque depois dos primeiros 100 frenéticos dias de Joe Biden, chegou o 106, quando surpreendeu a comunidade internacional mudando de opinião sobre um assunto tão controverso como o das patentes, que significa as empresas compartilharem a tecnologia com outros países que, em alguns casos, respeitam muito pouco a propriedade intelectual.

Com esta jogada, coloca à prova sua liderança no mundo, porque potências como a Alemanha já deixaram claro sua posição contrária e, principalmente, exibe suas artes de velho roqueiro da política: o que Washington realmente pode fazer é permitir a exportação de vacinas, como fez a União Europeia, ao mesmo tempo em que 40% da população está completamente vacinada, com dados deste sábado, e o desafio das autoridades é justamente encorajar o restante.

“Os presidentes com imagem de moderados têm mais facilidade de fazer coisas mais radicais e tentar fazê-las. Não se esqueça de que Franklin Delano Roosevelt não era socialista, foi do Governo de Woodrow Wilson, e Lyndon B. Johnson era um sulista sem imagem de progressista antes de chegar à Casa Branca”, comenta o historiador de Georgetown Michael Kazin, que está escrevendo um livro sobre a história do Partido Democrata. Biden, diz Kazin, “tem um excelente olfato para ver para onde vai seu partido, que está há anos imerso nessa guinada progressista, e ao mesmo tempo sabe ver o rumo tomado pelo país”. E, depois, encontrar o caminho convergente entre ambos.

O democrata mantém agora um índice de popularidade de 53%, que são dois pontos a mais do que a porcentagem de voto popular que teve nas eleições, o que significa, diz o historiador, que não está afugentando ninguém. “Acho que também o ajudou o fato de ser um homem branco idoso, não assusta os brancos idosos, e esses votam principalmente no Partido Republicano”, diz.

Como o mundo teria reagido se estas propostas viessem de Sanders ou da congressista Alexandria Ocasio-Cortez, a nova estrela da esquerda norte-americana?

É preciso ser Joe Biden —e viver uma crise da magnitude da atual— para fazer tudo isso sem escândalo. Para impulsionar um aumento de impostos às empresas e rendas mais altas para financiar programas que o país não via desde os anos sessenta. Para decidir a retirada do Afeganistão, com a ameaça talibã crescente e a Al Qaeda ainda viva, assumindo abertamente que não havia motivos para esperar melhoras; e para dizer que o líder do regime chinês, Xi Jinping, “não tem um só osso democrático no corpo”. Para dar novos impulsos a programas como o Compre produtos americanos que irritam os globalistas ortodoxos e manter todas e cada uma das taxas alfandegárias impostas à China pela Administração de Donald Trump.

Biden também devolveu aos Estados Unidos o espírito da multilateralidade e se colocou na liderança da manifestação na luta global contra a crise climática, elevando os objetivos de redução de emissões, mas quem esperava —talvez meio planeta— uma segunda edição da Administração de Barack Obama encontrou, em resumo, um presidente de novas crenças e escassos complexos.

Paul Laudicina, assessor da equipe de transição do Governo e diretor legislativo de Biden em sua etapa de senador, diz: “A diferença agora é que ele já não é a última pessoa que resta na sala para aconselhar quem toma a decisão”, que é o modo como Biden descreveu sua vocação como número dois de Obama. “Agora”, continua Laudicina, é “Biden que toma essas decisões”. E, principalmente, lida com problemas de natureza muito diferente da Grande Recessão de 2008 e 2009, que pedem políticas “atrevidas”.

Laurence Tribe, um professor de Direito de Harvard que o assessora em assuntos constitucionais desde sua época como senador, se expressa em termos parecidos por e-mail. “Este é o Joe Biden que conheci desde meados dos anos oitenta, muito mais decidido e enérgico do que as pessoas reconhecem”. Para ele, se a percepção de Biden como candidato é diferente da que se tem de Biden como presidente, isso se deve à ideia equivocada que se tinha dele, “não por uma mudança real em seus valores e sua concepção de para que serve o poder presidencial”.

Há certo mito na comentada guinada de Biden à esquerda, na opinião de Larry Sabato, analista eleitoral de referência nos Estados Unidos e diretor do Centro de Políticas da Universidade da Virgínia. “Os republicanos dizem isso e em alguns casos é verdade, mas Biden é muito pragmático. Ele mudará de postura em certos assuntos quando for necessário, como fez com o contingente de refugiados, por exemplo [após afirmar que manteria o máximo da Administração de Trump na Casa Branca o elevou a 62.500 neste ano, como havia prometido]”, afirma, e continua: “um mandato presidencial tem 1.500 dias, não julguem tudo somente pelos 100 primeiros”.

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A reforma fiscal que apresentou tem pouco de revolucionária. Propõe aumentar o imposto de sociedade de 21% a 28%, que significa um salto de sete pontos, mas não chega perto de recuperar a tesourada que recebeu da Administração de Donald Trump em 2017, que a reduziu de 35% a 21%. O economista francês Gabriel Zucman, discípulo de Thomas Piketty, fez uma análise sobre todos os aumentos de tributos apresentados pelo presidente —o de sociedades, os de investimento e os de altas rendas— para o The New York Times e concluiu que, entrando em vigor, deixariam a pressão fiscal sobre os ricos em um nível inferior ao que estava em meados dos anos 90, e note-se já havia ocorrido a grande diminuição de Ronald Reagan (aprovada no Congresso com notável apoio democrata, como o do senador Joe Biden, em 1986).

Para Gary Hufbauer, especialista em comércio internacional do Peterson Institute, o discurso de Biden sobre comércio “tem ecos do America first [de Trump], sem nenhuma dúvida, e essas políticas que defende serão utilizadas por outros países como precedente para fazer coisas semelhantes”. “É política econômica ruim, é nacionalista”, se queixa. Mas o clima da opinião sobre a globalização e os grandes tratados comerciais mudou há anos nos Estados Unidos. Já na campanha de 2016, Hillary Clinton, formada no establishment, admitiu os prejuízos causados por parte dos tratados comerciais, propôs mudanças e se afastou do Tratado do Pacífico que Obama havia recém-impulsionado.

Se o mundo se mostra desconfiado se deve, sobretudo, à retórica que acompanha uma bateria de medidas que, em boa parte, dependem do frágil controle dos democratas na Câmara de Representantes e no Senado, uma maioria frágil que, além disso, estará novamente em jogo nas eleições legislativas de novembro de 2022. Ou seja, na metade desses longos 1.500 dias citados por Larry Sabato. Era, até bem pouco tempo atrás, uma extravagância pensar que um presidente dos Estados Unidos poderia gravar um vídeo encorajando os trabalhadores da Amazon a formar um sindicato. E Biden o fez alegremente.

Um cientista político de Yale chamado Stephen Skowronek tem uma teoria interessante sobre os períodos dos Estados Unidos, segundo a qual os ciclos presidenciais podem ser medidos em lapsos de 40 a 60 anos que demarcam as fronteiras das possibilidades políticas a seus sucessores, independentemente do partido a que pertencem. Esses períodos começam com um presidente que marca uma mudança profunda sobre o modo de pensar e de fazer as coisas em relação ao passado, mas conforme esse ciclo avança, o modelo vai perdendo popularidade. E o que fecha esse período é uma espécie de último moicano que tenta romper alguns aspectos para tentar salvar o regime, mas fracassa. E assim começa outro ciclo.

Franklin D. Roosevelt abriu um ciclo e todos os republicanos e democratas que vêm depois mantêm as ideias básicas do New Deal e do grande Governo. Jimmy Carter é quem o fecha. O próximo presidente a inaugurar um ciclo, segundo sua teoria, é Ronald Reagan e Donald Trump se encaixa nessa figura rompedora que não pode evitar a transição a outro esquema (e, como Carter, também não consegue ser reeleito). Com a vitória eleitoral de Joe Biden, quintessência do establishment com 50 anos de carreira política, a teoria perderia validade, o ciclo parece ter pulado essa figura que iria refundar o sistema.

Mas Biden chegou com vontade de rock and roll e, aos 78 anos, com pouco a perder além da missa de domingo. Porque os que colocaram a boca no trombone com o democrata são os padres católicos dos Estados Unidos, que em sua reunião de junho debaterão se emitem um comunicado para dissuadir Biden e qualquer outra figura que defenda publicamente o direito ao aborto a tomar a comunhão. Têm um problema com ele. É o segundo presidente católico da história dos Estados Unidos, só precedido por John F. Kennedy, e é, além disso, um católico devoto, praticante orgulhoso, mas o primeiro que apoia sem rodeios a liberdade para interromper uma gravidez e o casamento de pessoas do mesmo sexo. Já o fez, como vice-presidente, antes de Obama. Até nisso Biden saiu do roteiro.

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