Irã e Arábia Saudita iniciam degelo com seus primeiros contatos em cinco anos
Delegações dos dois países se reuniram em Bagdá para reduzir as tensões e buscar restaurar as relações rompidas em 2016
O Irã e a Arábia Saudita iniciaram conversações diretas para reduzir a tensão mútua e tentar restaurar as relações diplomáticas rompidas cinco anos atrás. A reunião em Bagdá aconteceu no começo do mês, mas não foi oficialmente confirmada pelos dois governos até o momento. Ela parece ser consequência da mudança de enfoque dos EUA para a região desde a posse do presidente Joe Biden, que se mostra disposto a reativar o acordo nuclear com Teerã – algo que causa grande preocupação em Riad. Um novo encontro está marcado para esta semana.
Um alto funcionário saudita se apressou em desmentir, sob anonimato, a notícia sobre a reunião revelada no domingo pelo jornal Financial Times. Já o porta-voz da chancelaria iraniana, Saeed Khatibzadeh, mostrou-se mais ambíguo. “Vimos as informações da mídia (…), embora às vezes contenham declarações contraditórias”, respondeu a jornalistas durante sua entrevista coletiva de segunda-feira. “O importante é que a República Islâmica do Irã sempre foi favorável ao diálogo com o Reino da Arábia Saudita, porque ele favorece às pessoas de ambos os países, assim como à paz e estabilidade na região”, acrescentou.
A notícia não surpreendeu Kawa Hassan, diretor-executivo do Centro Stimson para a Europa e responsável por seu programa do Oriente Médio, que vem há quase seis anos trabalhando para criar confiança entre especialistas dos dois países através de uma diplomacia paralela (track 2, no jargão diplomático). “Devido às mudanças geopolíticas na região, era esperável. E em algum momento o Irã e a Arábia Saudita voltarão a ter uma relação funcional”, disse ele em conversa com o EL PAÍS. Hassan espera que um eventual entendimento entre os dois países reduza as tensões na região, especialmente no Iraque e Iêmen. Por enquanto, adverte, “é só o princípio, e não se deve esquecer a existência de forças interessadas em que fracasse”.
As relações entre a monarquia absoluta saudita, que se atribui a liderança do islamismo sunita, e o regime iraniano, convertido em paladino do xiismo, são marcadas por uma longa história de rivalidade, até que se interromperam por completo no começo de 2016, como resultado da execução no reino do xeique Nimr al Nimr, um conhecido clérigo xiita saudita, e o subsequente ataque à Embaixada saudita em Teerã. Riad respondeu retirando seu embaixador, uma medida que foi replicada pelos iranianos.
Apesar de rumores acerca de alguns encontros desde então, esta foi a primeira vez que se teve notícia de conversações políticas significativas. O diálogo, iniciado em 9 de abril em Bagdá, começou abordando os recentes ataques à Arábia Saudita por parte dos rebeldes huthis do Iêmen, ideologicamente próximos ao Irã. À frente da delegação saudita estava o chefe dos serviços secretos do reino, Khaled Bin Ali al Humaidan; não se soube quem foi seu interlocutor, embora o jornal libanês Al Akhbar, próximo ao grupo xiita Hezbollah, informe que se tratou de um alto funcionário do Conselho Supremo de Segurança Nacional do Irã. Uma fonte iraniana citada pela agência Reuters disse que o objetivo do encontro era “explorar se há alguma forma de rebaixar as tensões na região”, em resposta a um pedido do Iraque.
Fontes diplomáticas árabes respaldam essa versão. “Não tenho uma confirmação direta, mas entendo que ocorreu, porque os iraquianos o vazaram para perdurar essa medalha no próprio peito”, confidenciou ao EL PAÍS um ex-embaixador e analista da região. “Os sauditas estão procurando uma fórmula que lhes permita sair do Iêmen sem passar vexame, porque estão muitíssimo preocupados com o resultado das conversações de Viena”, disse ele, referindo-se ao processo que pode levar à reincorporação dos EUA ao acordo nuclear com o Irã.
Riad nunca ocultou sua oposição àquele pacto que as grandes potências assinaram com o Irã em 2015 para limitar seu programa atômico, por não abordar também o desenvolvimento de mísseis por parte de Teerã e seu apoio às milícias xiitas do Oriente Médio. Na verdade, o Governo saudita comemorou o fato de a Administração de Donald Trump ter abandonado aquele acordo, e agora, perante os esforços de Biden para reavivá-lo, tenta que seus interesses sejam levados em conta e inclusive pede para ser incluído nas reuniões. Além disso, há dois anos, os sauditas procuram uma fórmula para sair do atoleiro iemenita, algo que se encaixa no empenho do presidente norte-americano em buscar um cessar-fogo.
Tudo indica que foi o próprio primeiro-ministro iraquiano, Mustafa al Kadhimi, quem impulsionou o degelo entre seus vizinhos. Al Kadhimi em março se encontrou em Riad com o príncipe herdeiro Mohamed Bin Salman, que na prática governa o país, e teria utilizado suas boas relações com o Irã para facilitar o encontro de domingo passado. Desde sua chegada ao cargo, em maio do ano passado, o ex-chefe dos serviços secretos iraquianos tenta evitar que seu país se transforme em um novo campo de batalha das rivalidades regionais, objetivo complicado por abrigar um poderoso conglomerado de milícias pró-Irã empenhadas em alinhar Bagdá com Teerã, apesar de suas raízes árabes.