Reino Unido vive onda de indignação após repressão policial durante vigília por jovem executiva assassinada

Milhares de pessoas protestam pela atuação dos agentes contra mulheres que homenageavam Sarah Everard, 33 anos, morta supostamente por um policial. Ministra britânica do Interior ordena investigação

Milhares de londrinos protestam contra o assassinato de Sarah Everard, neste domingo, em frente ao Parlamento britânico. Em vídeo, as agressões policiais de sábado e o protesto do domingo.HENRY NICHOLLS (Reuters)
Mais informações
Família de George Floyd receberá 27 milhões de dólares em um acordo histórico com Minneapolis
A onda de indignação contra o racismo se espalha por todo o mundo
Assassinatos de crianças no Rio de Janeiro escancaram lentidão da Justiça nos casos de violência policial

O Governo de Boris Johnson enfrentava neste domingo um dilema endiabrado. Queria demonstrar apoio ao trabalho da polícia, submetida durante meses a uma tensão extraordinária para impor as duras medidas de distanciamento social, mas estava obrigado a responder a uma onda de indignação, sem distinção ideológica, causada pelas imagens dos confrontos da noite de sábado no bairro de Clapham, zona sul de Londres. Milhares de pessoas se reuniram neste domingo diante do palácio de Westminster, sede do Parlamento britânico, e da sede central da Scotland Yard para protestar contra a atuação policial. No final de noite de sábado, agentes haviam agredido algumas das mulheres que participavam da vigília em homenagem a Sarah Everard, uma executiva de 33 anos sequestrada e morta há duas semanas. O suspeito do crime, Wayne Couzens, de 48 anos e atualmente detido, é um oficial da polícia. O próprio Governo pôs em dúvida a manutenção no cargo da chefa da Polícia Metropolitana de Londres, Cressida Dick.

As organizadoras da manifestação, sob o lema “recuperemos estas ruas”, se resignaram a que a vigília do sábado fosse virtual ou em casas individuais, depois de não conseguirem chegar a um acordo com a Polícia Metropolitana (conhecida popularmente como Scotland Yard). As atuais restrições sociais para combater a pandemia impediam a concentração. O clamor social contra a morte de Everard, entretanto, obrigava a responder com inteligência à convocação. Milhares de mulheres tinham relatado durante a semana nas redes sociais seu próprio temor de caminharem sozinhas pelas ruas das cidades britânicas, especialmente Londres. A ministra do Interior, Priti Patel, tinha respondido com o lançamento de uma consulta pública destinada a melhorar a legislação e oferecer mais segurança a mulheres e meninas, que recebeu mais de 20.000 sugestões em 24 horas.

As vigílias convocadas em memória de Everard em todo o Reino Unido eram difíceis de parar. Em torno de um quiosque de música no parque Clapham Common, na zona sul de Londres, centenas de mulheres e homens pararam durante a tarde de sábado para depositar flores ou simplesmente registrar sua homenagem. Inicialmente, a estratégia da polícia parecia consistir em mostrar flexibilidade e prudência perante um assunto tão delicado. Dezenas de agentes cercavam a área sem fazer nada, e inclusive Kate Middleton, a duquesa de Cambridge e esposa do príncipe William, passou por lá para prestar seu tributo a Everard.

Agentes da Scotland Yard detém uma mulher no sábado, durante uma vigília, em Londres. HANNAH MCKAY (Reuters)

Mas, após o anoitecer, a tensão entre manifestantes e policiais foi aumentando. “Vocês são uma vergonha”, “a polícia não a protegeu”, “prendam seus agentes”, gritavam algumas dezenas de manifestantes em frente aos policiais, que tentavam impedir que alguém violasse o cordão de isolamento montado em torno do quiosque. No final da noite, começaram a ocorrer confrontos violentos entre os agentes e algumas das mulheres que rodeavam o improvisado memorial. Quatro delas acabaram detidas, mas o que desatou mais indignação foi a imagem, que imediatamente correu pelas redes, de algumas delas sendo empurradas contra o chão enquanto eram algemadas.

“Algumas das imagens da vigília em Clapham que circulam pelas redes sociais são terríveis. Pedi à Polícia Metropolitana um relatório completo de todo o ocorrido”, anunciou a ministra Patel no Twitter. A política conservadora, com fama de dura e sempre disposta a sair em defesa das forças de segurança, desta questionava vez a sensibilidade usada em uma situação tremendamente delicada. Horas depois, ao receber um primeiro relatório da Scotland Yard, não se deu por convencida e afirmou restarem “muitas perguntas sem responder”.

O prefeito de Londres, Sadiq Khan, reuniu-se no começo da manhã de domingo com a diretora da Scotland Yard, Cressida Dick, e anunciou logo depois que não estava satisfeito com suas explicações. “As cenas que mostram o modo como a polícia agiu durante a vigília por Sarah Everard são completamente inaceitáveis”, declarou o prefeito em nota. Ele exibiu uma dupla investigação – interna e judicial – do ocorrido.

Cressida Dick responde diretamente a duas autoridades que manifestaram dúvidas sobre a gestão dos incidentes: a ministra do Interior e o prefeito de Londres. “Se tivesse sido uma concentração legal eu também teria ido à vigília”, respondeu Dick às críticas no próprio domingo. “Mas infelizmente muita gente afinal se concentrou, houve discursos, e minha equipe pensou, acertadamente, que tudo isto representava um risco para a saúde dos cidadãos sob as atuais medidas de restrição.”

Nem a ministra nem o prefeito exigiram diretamente sua demissão, como fez, por exemplo, o Partido Liberal Democrata. O líder da oposição, o trabalhista Keir Starmer, tampouco quis ir tão longe, mas definiu as cenas de violência como “profundamente inquietantes” e defendeu o direito à manifestação pacífica. “Compartilho da raiva e insatisfação de vocês pelo modo como se lidou com tudo isto. Assim não se controla policialmente uma manifestação”, denunciou Starmer.

A primeira resposta da Scotland Yard, na madrugada de domingo, tinha um tom defensivo que terminou por irritar todos os seus críticos. Helen Ball, adjunta de Cressida Dick, afirmou em nota que os agentes “enfrentaram uma situação complicada”, na qual “centenas de pessoas aglomeradas representam um risco de transmissão da covid-19”, e que “infelizmente uma minoria começou a gritar, empurrar e atirar objetos” nos policiais.

Outras manifestações na era da pandemia

Em junho do ano passado, quando reuniões públicas com mais de cinco pessoas continuavam proibidas no Reino Unido por causa da pandemia, eclodiram os protestos do movimento Black Lives Matter. Naquela ocasião a Polícia Metropolitana decidiu não intervir para dispersar as concentrações, dada a natureza sensível do assunto. Alguns agentes chegaram inclusive a realizar o gesto solidário de pôr um joelho no chão.

Em Glasgow, na passada semana, as forças de segurança decidiram olhar para outro lado quando milhares de torcedores dos Rangers foram para a rua comemorar uma vitória do seu time. Limitaram-se a esperar que a concentração se dispersasse sozinha. No parque Clapham, os agentes optaram por intervir quando restavam poucas dezenas de manifestantes ainda concentradas.

Mais informações

Arquivado Em