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Antecedente da invasão do Capitólio, disputa da eleição de 1876 impulsionou a segregação racial nos EUA

Não há precedentes para o que ocorreu nesta quarta-feira no Capitólio, mas há um passado, cuja referência mais clara é o confronto entre Rutherford B. Hayes e Samuel J. Tilden

Guillermo Altares
Ato de posse da presidência de Rutherford B. Hayes, em Washington em 1877.
Ato de posse da presidência de Rutherford B. Hayes, em Washington em 1877.Cordon Press
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Ashli Babbitt, a trumpista veterana das Forças Armadas que acabou abatida no Capitólio

As imagens de uma turba ultradireitista invadindo o Capitólio depois de ser açulada pelo ainda presidente Donald Trump são, sem dúvida, insólitas e difíceis de imaginar antes de terem ocorrido, na quarta-feira. Entretanto, fincam suas raízes em décadas de negação da democracia por uma parte pequena, mas significativa, da sociedade norte-americana: carecem de precedentes, mas têm um passado.

Nos Estados Unidos, como em muitos países democráticos, existe uma longa tradição de eleições contestadas e de denúncias de fraude, embora nunca até agora o Parlamento tivesse sido invadido numa tentativa de reversão do resultado eleitoral. Algumas dessas eleições suspeitas são tão conhecidas que viraram clichê, como os conchavos do pai de John Kennedy com a máfia para que o democrata ganhasse o crucial Estado de Illinois, que acabou lhe dando a presidência. A maracutaia foi bem divulgada; aparece, por exemplo, em filmes como o último de Martin Scorsese, O Irlandês, mas o perdedor, Richard Nixon, desistiu dos recursos. A primeira vitória eleitoral de George W. Bush, em 2000, se deu graças a um punhado de votos na Flórida, Estado então governado por seu irmão, o que também gerou enorme controvérsia, mas Al Gore aceitou sua derrota depois de uma sentença da Suprema Corte.

Historiadores e jornalistas afirmam que o precedente mais próximo da disputa mantida por Trump, baseada em mentiras e contrariando todas as evidências, são as eleições presidenciais de 1876, quando também houve uma desavença sobre os votos do Colégio Eleitoral ―nos EUA, o presidente não é designado por sufrágio direto, e sim por delegados dos Estados, eleitos por voto universal―, mas daquela vez não houve distúrbios. Tanto naquela ocasião do século XIX como agora, no entanto, o que está latente por trás do conflito é algo muito mais profundo e terrível: a negação do direito à representação política de uma parte da população, as minorias, sobretudo os afro-americanos.

É preciso esfregar os olhos antes de confirmar que é real a foto de um sujeito de torso nu, cheio de tatuagens, usando um gorro de pele com chifres de bisão, ocupando a cadeira de presidente do Senado. Entretanto, a estética paramilitar, as bandeiras sulistas, as camisetas nazistas com o lema “Camp Auschwitz”, o culto às armas e, sobretudo, a defesa do racismo institucional são aberrantes, mas não surpreendentes. São aqueles a quem Trump dirigiu as seguintes palavras na tarde de quarta-feira: “Vocês são muito especiais, amamos vocês”. E que ele se negou a condenar quando outra turba neonazista, simpatizante da Ku Klux Klan, atacou manifestantes esquerdistas e do Black Lives Matter em Charlottesville, em 2017.

Trump nunca ocultou sua identificação com o supremacismo branco. Aliás, um de seus principais argumentos contra a presidência de Barack Obama foi promover a falsidade de que não tinha nascido nos Estados Unidos, embora, na verdade, o que pretendia dizer é que, por ser negro, não tinha direito a ocupar a Casa Branca. A recusa em aceitar o resultado eleitoral também tem a ver com o racismo, com a negação de que todos os votos valem a mesma coisa. Uma das batalhas políticas mais persistentes dos EUA, por sinal, envolve as dificuldades impostas pelos republicanos ao registro de novos eleitores, o que afeta sobretudo os negros e hispânicos. A reviravolta no cenário político da Geórgia, que entregou suas duas vagas do Senado aos democratas, só foi possível após 10 anos de luta da ativista Stacey Abrams para registrar eleitores negros.

Esse longuíssimo combate tem sua origem naquelas eleições presidenciais de quase 150 anos atrás. Como recorda em uma crônica o setorista do The New York Times na Casa Branca, Peter Baker, “aquelas eleições de 1876 foram as mais disputadas na história norte-americana e certamente as que tiveram maiores repercussões”. O paradoxo, salienta Baker, é que quase ninguém se lembra dos dois protagonistas daquela briga, o republicano Rutherford B. Hayes, que levou a presidência no ano seguinte à votação, e o democrata Samuel J. Tilden, apesar da sua marca duradoura na política norte-americana.

Marcha de supremacistas em 11 de agosto em Charlottesville, em 2017.
Marcha de supremacistas em 11 de agosto em Charlottesville, em 2017.Alejandro Álvarez (News2Share via REUTERS)

A disputa, à qual se referiu Ted Cruz, um dos poucos senadores republicanos que seguiram Trump em sua corrida de falsas denúncias para lugar algum, estourou quando democratas e republicanos de três Estados do sul, Louisiana, Carolina do Sul e Flórida, enviaram delegados diferentes, porque um grupo não reconhecia o resultado alegado pelo outro. A Guerra de Secessão tinha terminado em 1865, e esses três territórios ainda estavam ocupados pelas tropas da União. A disputa foi resolvida em 1877, quando os democratas, então racistas, aceitaram a derrota em troca de que o Exército da União se retirasse do sul do país e acabasse a chamada política de Reconstrução, que pretendia dar direitos aos negros, que até pouco tempo antes tinham sido escravos.

“O trato final foi que os republicanos obtivessem o controle da Casa Branca”, explicou o professor da Universidade de Columbia Eric Foner, especialista na história daquela época, à revista Law&Crime. “Reconheceu-se que os democratas tinham o controle de todo o sul, e isso levou à lenta, não imediata, mas lenta, imposição do que chamamos do sistema de Jim Crow, e finalmente à cassação do direito dos negros ao voto e à imposição da segregação”. O movimento dos direitos civis, que devolveu a representação cívica aos afro-americanos, tem sua continuação na presidência de Obama ou na luta de personagens cruciais como Stacey Abrams, que conseguiu mudar o quadro na Geórgia; mas nunca deixou de encontrar uma resistência por parte daqueles que negam a igualdade. Utilizando como pretexto uma imaginária fraude eleitoral, o ataque de quarta-feira ao Capitólio faz parte desse longo combate.

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