Espanha liberta terrorista extraditado em fevereiro pelo Brasil
O ultradireitista Carlos García Juliá cumpriu parte da pena por seu envolvimento na chacina de Atocha, em 1977
Eram 9h40 desta quinta-feira (hora local; 5h40 em Brasília), quando, com passo firme e acompanhado de seu advogado e de alguns amigos, Carlos García Juliá deixou para trás a penitenciária de Soto del Real, nos arredores de Madri. O pistoleiro ultradireitista que pôs em xeque a transição espanhola para a democracia, autor, junto a dois cúmplices, da chacina em um escritório de advocacia trabalhista no bairro madrilenho de Atocha, em 1977, já caminha livremente pela Espanha. Ele conseguiu que a Audiência Provincial de Ciudad Real, na região de Castela-La Mancha, antecipasse a libertação dele, aplicando-lhe benefícios penitenciários que obteve antes de se tornar foragido da Justiça espanhola na década de 1990, aproveitando a concessão da liberdade, condicional. Ele foi preso no final de 2018 em São Paulo, usando uma identidade falsa. “Eu já pedi perdão há muito tempo”, afirmou o assassino ao deixar o centro penitenciário.
– Cumpriu sua parte com a Justiça? – perguntaram-lhe os jornalistas postados na saída da prisão.
– A justiça cumpriu comigo.
– Arrepende-se?
– Mas que perguntas são essas! Claro, de tudo.
– Pede perdão às vítimas?
– Serão elas as que têm de me perdoar [...]. Eu já pedi perdão faz muito tempo – afirma, embora o último sobrevivente do crime, Alejandro Ruiz-Huerta, diga que García Juliá nunca se dirigiu a eles para isso.
As vítimas lutaram até o último minuto para tentar impedir este momento. Foram à Justiça ordinária, que rejeitou suas alegações. E, como último recurso, ao Tribunal Constitucional. Sua batalha começou em 8 de maio, quando souberam pela imprensa que a Audiência de Ciudad Real tinha aceitado antecipar a libertação do assassino para 19 de novembro. Apenas três meses antes, o Brasil o havia extraditado para Espanha após capturá-lo no final de 2018, encerrando uma fuga que durava desde a década de 1990. Segundo um cálculo de 21 de fevereiro de 2020, a Audiência Nacional previa que naquele momento ele ainda deveria permanecer mais 3.854 dias atrás das grades (mais de 10 anos).
“No nosso entender, tudo estava correto na aplicação estrita da lei”, salienta Cristina Almeida, advogada das vítimas. A Audiência Nacional tinha sido o órgão que o julgou e condenou a 193 anos de reclusão em 1980. Também tinha ordenado sua busca e captura internacional e administrado sua entrega final às autoridades espanholas. “Mas, de repente, ficamos sabendo que levaram [o tema] a Ciudad Real e tinham feito uma redução da pena, de modo que só lhe restava cumprir 287 dias”, acrescenta a advogada.
A defesa de García Juliá aproveitou que em seu histórico constava uma sentença posterior, ditada pela Audiência Provincial e, portanto, este órgão podia assumir o assunto. Em 1979, numa tentativa de fuga durante sua permanência na prisão preventiva à espera do julgamento pela chacina de Atocha, ele sequestrou o diretor da penitenciária de Ciudad Real, a sua família e um funcionário. A frustrada iniciativa lhe valeu outra condenação. “Acreditava que a política pesaria mais nas resoluções da Audiência Nacional”, disse o advogado do assassino, Ignacio Menéndez, justificando sua decisão de levar o caso a Ciudad Real.
“A redução [da pena] ocorre de uma maneira no mínimo irregular e escandalosa”, opina Alejandro Ruiz-Huerta, professor aposentado de Direito Constitucional na Universidade de Córdoba (sul da Espanha) e o último sobrevivente da matança. “Isso de Ciudad Real pareceu tão estranho… A gente se espanta que a Justiça possa agir assim. E que o promotor se recuse a recorrer. E que a Audiência Nacional, que tinha pedido a extradição, também se desvincule do tema”, acrescentou ele ao EL PAÍS. Na opinião das vítimas, a antecipação da libertação viola a lei por lhe conceder benefícios penitenciários apesar de ele ter tentado fugir da prisão.
Menéndez defende, por sua vez, a decisão da Audiência Provincial: “Ele cumpriu integralmente [sua dívida] não com a Justiça, e sim com a sociedade espanhola, até o último dia. É uma pessoa absolutamente livre”. O advogado de García Juliá insiste em que “cumpriu-se o princípio de legalidade” ao lhe aplicar esses benefícios penitenciários que tinha “consolidado” antes de sua fuga nos anos noventa e que, conforme salienta, estavam previstos no Código Penal vigente na época. Nessa mesma linha se pronunciaram, realmente, as juízas de Ciudad Real que reconheceram a “contradição e perplexidade” pelo fato de o assassino poder “manter os benefícios penitenciários obtidos com antecedência à sua evasão”, mas que era isso que determinava a normativa vigente naquele momento.
O crime
García Juliá, presença frequente em atos do grupo direitista Força Nova, entrou na noite de 24 de janeiro de 1977 em um escritório de advocacia trabalhista no bairro de Atocha, vinculado à central sindical Comissões Operárias (CC OO). Junto a dois companheiros, José Fernández Cerrá e Fernando Lerdo de Tejada, matou a tiros Enrique Valdelvira, Luis Javier Benavides, Francisco Javier Sauquillo, Serafín Holgado e Ángel Rodríguez Leal. Outras quatro pessoas sofreram ferimentos gravíssimos: Alejandro Ruiz-Huerta, Luis Ramos, Miguel Sarabia e María Dolores González.