Crise da ‘Trumpeconomia’ tira uma das principais cartadas eleitorais do presidente americano
Perda de fôlego do pacote fiscal de 2017 e a chegada da pandemia colocam em crise a indústria e o até então florescente setor de serviços, pondo em xeque a reeleição do mandatário
Populações pequenas e dispersas, poderosos caminhões e picapes queimando gasolina em estradas insignificantes e infinitas, lampejos de uma grandeza perdida na forma de enormes bibliotecas públicas e ostentosos parques, que ninguém frequenta. Existem muitos povoados construídos em torno de uma fábrica no Meio Oeste dos Estados Unidos, mas poucos representam tão bem as agruras da indústria norte-americana quanto Lordstown, em Ohio, orgulhosa sede de uma das maiores unidades da General Motores no país. Foi a maior empregadora na região vale do rio Mahoning, depois do colapso da indústria siderúrgica, no começo da década de oitenta. O destino da fábrica se reflete no do pequeno bar de Nese, na entrada do lugarejo, em frente ao cemitério. O estabelecimento foi reduzindo seu horário à medida que eram eliminados turnos na cadeia de montagem. Há dois anos, a garçonete contava a este correspondente que, enquanto a fábrica não fechasse, continuariam chegando clientes, mas que já não tinha tanta certeza disso. Hoje, um cartaz de “vende-se” e outro de “aluga-se” são vistos nas ruínas do pequeno café, que acumula poeira e teias de aranha.
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A fábrica teve o mesmo destino. Idem quanto aos 4.500 postos de trabalho que ela chegou a oferecer. No imenso estacionamento onde, anos atrás, aguardavam centenas de carros reluzentes, o mato cresce pelas frestas do asfalto envelhecido. Um pequeno cartaz vermelho com os dizeres “Trump na lixeira” se destaca sob o imponente letreiro preto com o logotipo da Lordstown Motors, a chamativa usina onde foi produzido um protótipo de picape elétrica elogiado ainda nesta segunda-feira pelo presidente na Casa Branca. A nova fábrica ocupa uma pequena parte do mastodonte de concreto onde funcionava a antiga. “Bem-vindo ao vale da voltagem”, diz um dos cartazes na imaculada recepção. “O futuro do trabalho é elétrico, e neste nosso canto da América sabemos uma coisa ou outra sobre trabalho”, anuncia outro.
“Há quatro anos Trump nos disse que não vendêssemos nossas casas, que a General Motores não iria embora”, recorda Ethan Kistler, de 30 anos, que vive a apenas três quilômetros da instalação. “E veja agora. Meu cunhado trabalhava numa fábrica de componentes para a fábrica e precisou se mudar para Wyoming. Meu vizinho da frente também teve que ir embora. O presidente diz que Lordstown está florescente. E você, o que acha?”
Neste mesmo Estado de Ohio, há 40 anos, o então candidato republicano Ronald Reagan cunhou uma frase simples, mas que virou um clássico da política norte-americana. Ele enfrentava, num debate em Cleveland, o então presidente democrata, Jimmy Carter, que tentava a reeleição. Nos minutos finais, perguntou aos cidadãos: “Vocês estão melhor agora do que há quatro anos?”. A resposta, claro, era não. As pesquisas até então estavam apertadas, mas Reagan arrasou nas eleições uma semana depois.
Muito mudou desde 1980 para que, como reza o não menos surrado aforismo, tudo continue igual. Quatro anos de Donald Trump transformaram o jeito de fazer política neste país, polarizaram a sociedade até limites demenciais, romperam os equilíbrios geoestratégicos globais. Mas dentro de um mês, quando os cidadãos votarem em uma eleição cuja importância ambos os partidos descrevem como existencial, em Estados como Ohio, distantes do ruído de Washington, muitos irão às urnas calibrando o peso de seus bolsos - desde que a internação de Trump, contaminado pela covid-19, não altere radicalmente o desenho eleitoral atual.
Maior preocupação
Nestes Estados do Meio Oeste, onde 77.744 cédulas deram a chave da Casa Branca a Trump quatro anos atrás, a primeira preocupação dos eleitores para o pleito de 3 de novembro, segundo um estudo recente, é a economia. Você está melhor que há quatro anos? A resposta curta, tão clara agora como em 1980, é que não.
Os Estados Unidos atravessam hoje a pior desaceleração econômica desde a Grande Depressão. No segundo trimestre do ano, o PIB caiu 9,5%. Em agosto, havia 11,5 milhões menos norte-americanos com emprego que em fevereiro. A taxa de desocupação, apesar de ter caído desde o pico de 14,7%, ficou em 7,9% em setembro, mais que o dobro de fevereiro (3,5%). Donald Trump, segundo a organização progressista Centro para o Progresso Americano, se encaminha para se tornar o único presidente a completar seu mandato com uma situação de contração do emprego desde que o Escritório de Estatísticas do Trabalho mantém os registros mensais.
A fotografia, evidentemente, foi alterada. No primeiro trimestre do ano, a economia foi repentinamente atingida por uma pandemia – “a praga chinesa”, nas palavras usadas por um Trump furioso no debate presidencial da semana passada – que obrigou a frear a atividade em boa parte do mundo, e que privou o presidente do argumento com o qual esperava se manter por mais quatro anos morando na Casa Branca. Nenhum presidente na história moderna dos Estados Unidos perdeu a reeleição com uma economia forte, e até fevereiro os Estados Unidos surfavam uma insólita onda de crescimento ininterrupto de 11 anos. Trump quis prolongar a boa fase herdada introduzindo, em dezembro de 2017, o maior corte de impostos em três décadas, premiando especialmente os mais ricos e as empresas. Mas o fato é que a onda, como avisavam com insistência os críticos do presidente, já estava se desmanchando.
Na segunda metade do mandato de Trump, à medida que se neutralizava o efeito do estímulo fiscal e as guerras comerciais prejudicavam o investimento das empresas, o crescimento se desacelerou de 2,9% em 2018 para 2,3% em 2019. A freada era mais evidente em Estados como Ohio, no cinturão industrial do Meio Oeste, fadados a novamente serem decisivos nas eleições.
“Os dados mostram que o setor industrial em Michigan, Ohio, Pensilvânia e Wisconsin, os quatro Estados do Meio Oeste que deram a vitória a Trump, já estava em recessão antes inclusive da pandemia”, explica Michael Shields, do think tank Policy Matters Ohio, coautor de um estudo publicado na semana passada que analisa as tendências no emprego e os salários nos últimos 20 anos. “Não houve uma recuperação do setor industrial e os motivos principais são a destrutiva guerra comercial com a China, os defeitos nos acordos comerciais alcançados com outros países e uma política fiscal que beneficia as grandes multinacionais que produzem fora do país”, acrescenta Shields.
Mas nem toda a economia norte-americana estava tão mal das pernas como a indústria. A foto de chegada do mandato de Trump, antes da pandemia, era mais ou menos assim: a indústria e alguns setores adjacentes, mais vulneráveis à desaceleração econômica global e às guerras comerciais, estavam perdendo emprego; já o setor serviços, animado pelos consumidores, se mantinha à tona.
Acontece que o setor industrial está superdimensionado no debate político, precisamente porque algumas dezenas de milhares de votos nestes Estados do Meio Oeste podem decidir as eleições. Mas em dezembro de 2019 a indústria representava apenas 8,4% dos empregos no país, um percentual que segue em ritmo decrescente desde a Segunda Guerra Mundial. Inclusive nestes Estados do Meio Oeste, segundo William Adams, economista do banco PNC em Ohio, a tendência está mudando. “A indústria faz parte da identidade da região dos Grandes Lagos, mas sua importância no emprego segue uma tendência descendente”, explica. “Os jovens vão à universidade e cada vez mais trabalham no setor serviços. Com um mercado de trabalho tão ajustado como o que vínhamos tendo, fica difícil encontrar trabalhadores qualificados. A população destes Estados envelhece. Em 2019 havia 822.000 empregos no setor da saúde em Ohio, 100.000 a mais que em 2009. No setor industrial havia 717.000 empregos em 2019, quase 100.000 a menos que em 2009. A indústria continua e continuará sendo uma parte importante da nossa economia, mas o trabalho será mais técnico e automatizado, não será um motor do emprego como era há 20 ou 40 anos.”
Serviços em crise
Os Estados Unidos em 2020 são em boa medida uma economia de serviços, portanto, e a boa notícia é que até este ano o setor gozava de boa saúde. A má notícia é que o coronavírus o deixou tremendo. E para comprovar isso basta viajar 660 quilômetros a leste, até o centro de Manhattan, na cidade de Nova York.
Já faz meio ano que sempre é domingo no Midtown. Os funcionários dos escritórios não transitam mais pelas calçadas. O metrô vive deserto. Os comércios, fechados. E, na hora do almoço, apenas algumas almas saem para respirar o ar fresco através da máscara. “Vim pegar um computador com um novo sistema que precisamos. Estou desde março instalado em Long Island, fora da cidade, com minha mulher e meus filhos. Não sobrou quase ninguém no escritório. Sei lá quando voltaremos”, diz John, de 48 anos, funcionário de um banco, que prefere não dar seu sobrenome.
Às suas costas, o edifício Time & Life. Apenas algumas poucas centenas de pessoas povoam hoje o interior desta torre modernista, em pleno Rockefeller Center, reformada há poucos anos para receber 8.000 trabalhadores em seus 48 andares sem colunas. Em tempos normais a amplíssima calçada que o rodeia, cujo desenho emula o pavimento ondulado de Copacabana, num aceno à sua localização na avenida das Américas, fervilhava de gente e de comércios que ofereciam tudo o que os empregados de escritório pudessem necessitar antes de retornar às suas mesas. Hoje é uma parte quase inerte de uma cidade-fantasma.
Por trás das janelas dos arranha-céus vazios do Midtown se esconde uma catástrofe. Esta parte da ilha de Manhattan constitui há um século a musculatura da cidade de Nova York. Um símbolo de sua grandeza, que sobreviveu a todas as crises, mas agora foi atropelada por um ser microscópico. O coronavírus o esvaziou de vida, mas também de sentido. A ideia deste enxame de aço, concreto, vidro e asfalto era juntar o maior número possível de pessoas, o contrário do distanciamento social.
O resto da cidade retorna pouco a pouco à normalidade, mas o Midtown está ainda longe dela. Menos de 10% dos trabalhadores dos escritórios de Nova York voltaram a seus postos. Apenas uma quarta parte dos grandes empregadores da cidade planeja voltar a encher seus escritórios antes do final do ano, e 54% acreditam que o farão no primeiro semestre de 2021, segundo um recente estudo.
A pandemia está prestes a fazer de 2020 em seu conjunto o pior dos últimos 20 anos para o mercado de escritórios. Aluga-se menos, mais barato e por períodos mais curtos. Nova York tem mais espaço de escritórios que Londres e San Francisco somados. O trabalho no escritório é o coração de Nova York. O que se paga em impostos pelos espaços que eles ocupam representa um em cada 10 dólares de arrecadação fiscal da cidade. A Big Apple já superou muitas crises antes, mas esta pandemia fez as companhias reverem o modelo completo.
O turismo parou em seco. Os teatros da Broadway estão há seis meses fechados, a paralisação mais longa da sua história. São 10.000 empregos diretos e outros 87.000 indiretos. Bares, lojas de bairro, lavanderias. Fora de Manhattan, os pequenos comércios são os que dão uma personalidade única aos bairros nova-iorquinos. São, mais que as grandes empresas financeiras, o coração da metrópole. Constituem 98% dos empregadores e empregam mais de três milhões de pessoas, a metade dos trabalhadores da cidade. Quando a pandemia acabar, um terço das 240.000 pequenas empresas da cidade terá fechado para sempre, segundo um relatório da Associação para a Cidade de Nova York, que engloba a um grupo de quase 300 empresários.
A taxa de desemprego na cidade de Nova York é de 16%, o dobro da média nacional. Apenas um terço dos quartos de hotel está ocupado. A onda de moradores saindo da cidade por causa do coronavírus deixou 15.025 apartamentos vazios em Manhattan, segundo um estudo da companhia imobiliária Douglas Elliman, o que supõe uma taxa de desocupação de 5%, a mais alta nos 14 anos desde que o estudo começou a ser produzido. A volta dos trabalhadores, o retorno à nova normalidade, seja esta como for, fará de Manhattan um banco de testes do que o futuro proporciona a outros centros urbanos em todo o mundo.
Ponto de inflexão
Antes da pandemia, a economia norte-americana destes quatro anos de Trump não era “a melhor economia da história”, como gosta de repetir esse presidente tão afeito à hipérbole. Seguia um mesmo padrão de expansão desde o início do Governo Obama, abaixo dos índices de 4% registrados, por exemplo, na segunda metade dos anos noventa.
O coronavírus deixou tudo de pernas para o ar, e a situação no país, como não perde oportunidade de recordar o presidente, melhorou nos últimos meses. Em meados de setembro, a OCDE corrigiu sua previsão de contração da economia norte-americana para o final deste ano. De uma queda de 7,3% que calculava em junho para uma de 3,8%. Não era o único dos países ricos para os quais as previsões melhoravam, mas sim o que merecia a correção mais otimista.
Os principais motivos da melhora na economia foram a progressiva reabertura da atividade e o colossal plano de estímulo aprovado ainda no primeiro semestre. Uma injeção de quase três trilhões de dólares, a maior oferecida por qualquer país no mundo, tanto em termos absolutos como em relação ao PIB, com um envio maciço de cheques de 1.200 dólares aos cidadãos, complementos aos benefícios para desempregados e ajudas a diversos setores.
Mas as medidas se esgotam, e a rivalidade política impede que o Congresso aprove um segundo pacote. “Tornou-se improvável que haja outra rodada de estímulos fiscais antes das eleições”, afirmava a equipe de economistas do Bank of America em uma nota recente.
Embora Estados como Nova York, onde o coronavírus golpeou sem clemência no segundo trimestre, tenham conseguido até agora reverter a curva da pandemia, os números de contágios continuam sendo altos em nível nacional. Inclusive o próprio presidente e sua mulher deram positivo nesta semana. Com a chegada do frio, somado a um presidente ansioso por consolidar a recuperação econômica antes das eleições, poucos descartam uma segunda onda, como a que a Europa está sofrendo, quando os norte-americanos tiverem que responder, justamente 40 anos depois, à pergunta de Reagan.
Em Wall Street, a festa continua
Nos EUA, há duas realidades: a ‘main street’ – a economia real – e Wall Street – o mundo do dinheiro. A lacuna que se abre hoje entre esses universos paralelos é maior do que nunca. Enquanto as pessoas nas ruas sofrem as consequências da covid-19, a Bolsa aproveita seus dias de vinho e de rosas. Desde que Donald Trump ganhou as eleições, em 2016, o índice S&P 500 se valorizou mais de 60%. Depois do descalabro do passado mês de março, quando a pandemia eclodiu, o mercado norte-americano se recuperou com grande vigor e volta a cotar perto de seu recorde histórico.
O balanço triunfal de Wall Street, embora o atual presidente trate de vendê-lo como um tento a seu favor, tem um grande responsável; o Federal Reserve (banco central). O organismo presidido por Jerome Powell deu asas à renda variável com sua política monetária. A desaceleração econômica que começou a aflorar em 2018 e, sobretudo, as consequências econômicas do coronavírus obrigaram o banco central norte-americano a recuar em seu plano de retirar de forma paulatina os estímulos que tinha injetado depois da Grande Recessão. O dinheiro barato, com juros que voltaram a 0,25% depois de se situar em 2,5% há pouco mais de um ano, foi a gasolina que alimentou a disparada das cotações.
As políticas expansivas do Fed tiveram um claro efeito colateral na divisa. O dólar, que andou flertando com a paridade com o euro no final de 2016, dançou ao som dos juros durante o mandato de Trump. Atualmente, cada cédula verde só rende 85 cêntimos de euro. Esta fraqueza na taxa cambial é música para os ouvidos do setor exportador norte-americano.
Em 3 de novembro as urnas decidirão o próximo inquilino da Casa Branca. Teoricamente, o mundo do dinheiro deveria simpatizar mais com Trump, com uma visão mais pró-mercado. Entretanto, suas políticas de terra arrasada em matéria comercial e ambiental são um peso que inclusive Wall Street reconhece. “A percepção de que uma vitória de Joe Biden seria um resultado ruim para os mercados não está corroborada pelo histórico dos presidentes democratas”, afirma Schroders em uma nota enviada a seus clientes. “Se estes vencerem no Congresso, é provável que os preços das ações dos EUA descontem o aumento dos impostos sobre as empresas. Por outro lado, se os republicanos mantiverem o controle do Senado, é pouco provável que reformas fiscais sejam aprovadas. Entretanto, como a maior parte das decisões de política externa cabe ao presidente, ainda podemos esperar uma melhora nas relações internacionais. Esta combinação de status quo fiscal e um degelo das relações internacionais seria o melhor cenário para os mercados globais”, aponta a empresa britânica de gestão.
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