Congresso do Peru rejeita impeachment de Martín Vizcarra
Embora o presidente tenha se livrado da destituição, ele tem pela frente mais dez meses de governo afetado pelo descrédito, e não conta com uma base ampla no Parlamento
O Congresso do Peru rejeitou na noite de sexta-feira a destituição do presidente do país, Martín Vizcarra, que derrotou assim uma moção para incapacitá-lo após ser acusado de concessão irregular de contratos. O processo, forçado por seis dos nove grupos do Parlamento há uma semana, dependia basicamente da decisão das duas forças majoritárias. Em sua defesa no Congresso, Vizcarra pediu desculpas pelos áudios de conversas que geraram a crise política no país. Alguns líderes políticos que dias atrás estavam a favor de tornar vago o cargo de presidente acabaram mudando de posição. Depois de um dia inteiro de debates, 78 congressistas votaram contra o impeachment, 32 votaram a favor e 15 se abstiveram. Eram necessários 87 votos para aprovar a destituição.
Os partidos Ação Popular (exceto dois de seus congressistas), Aliança pelo Progresso, Força Popular (exceto uma congressista) e Morado votaram em bloco no “não”, enquanto o grupo político de Antauro Humala, União pelo Peru, e o partido Frente Popular Agrícola do Peru votaram pela destituição.
O Podemos Peru, liderado por dois políticos investigados, Luna Gálvez e Luna Morales, optou pela abstenção, e na esquerdista Frente Ampla houve dois votos contra e cinco abstenções. Nove membros do Somos Peru foram contra e um, a favor. Vários dos que votaram contra a destituição disseram ter feito isso contra sua posição pessoal, por seguir a indicação do chefe do partido (como no caso da Ação Popular e da Aliança para o Progresso), ou por colocar os interesses do país em primeiro lugar. Outros afirmaram que a rejeição do impeachment não eximia o presidente de responsabilidade.
Na semana passada, a bancada da Aliança pelo Progresso foi a que contribuiu com mais votos para que o Congresso abrisse o processo para destituir o chefe de Estado. O líder desse partido, o ex-candidato à presidência César Acuña, no entanto, divulgou um pronunciamento considerando “desnecessário e impertinente forçar uma vacância presidencial”. Seu irmão, o congressista Humberto Acuña, foi condenado no início de setembro à inabilitação para exercer cargos públicos por ter oferecido suborno a um policial ligado a uma rede criminosa, mas ainda ocupa a cadeira no Congresso.
Em prisão domiciliar, a líder da Força Popular, a ex-candidata à presidência presidencial Keiko Fujimori, também se manifestou contra a destituição. Ela é investigada por lavagem de dinheiro após ter recebido fundos ilegais da construtora brasileira Odebrecht para suas campanhas eleitorais em 2011 e 2016. Essas opiniões pesaram na decisão tomada quinta-feira pelo Tribunal Constitucional, ao qual o Governo recorreu para pedir uma medida cautelar que suspendesse o processo de impeachment. O pedido foi rejeitado. “Percebemos, pelas declarações dos porta-vozes e dos que têm representação partidária, que não estão inclinados a apoiar a vacância presidencial”, comentou na manhã de sexta-feira a presidenta do tribunal, Marianella Ledesma, à Radioprogramas.
Vizcarra foi colocado contra a parede depois que o congressista Edgar Alarcón, em coordenação com o presidente do Congresso, Manuel Merino, da Ação Popular, divulgou em 10 de setembro três áudios gravados pela secretária pessoal do presidente. Em um deles, Vizcarra, seu assistente e a secretária-geral de presidência combinam a versão que deveriam dar à Procuradoria e à Comissão de Fiscalização do Congresso sobre as visitas de Richard Cisneros −um cantor que ganhou contratos estatais em um valor equivalente a quase 270.000 reais durante os mandatos do ex-presidente Pedro Pablo Kuczynski e de Vizcarra− ao Palácio do Governo.
Alarcón, que preside a Comissão de Fiscalização, enfrenta, por sua vez, duas acusações constitucionais que o Parlamento ainda não debateu. A procuradora-geral Zoraida Ávalos o denunciou por corrupção e enriquecimento ilícito, crimes que teria cometido quando chefiava a Controladoria da República, cargo do qual foi destituído pelo Congresso em 2017. No dia 11, além de Aliança pelo Progresso, votaram em bloco a favor de debater a destituição de Vizcarra a União pelo Peru e o Podemos Peru, cujos líderes têm problemas com a Justiça: um está preso pelo assassinato de quatro policiais e o outro é investigado por lavagem de dinheiro no caso Odebrecht.
Durante a sessão de debate do impeachment, o advogado do presidente Vizcarra, Roberto Pereira, apontou as falhas que o Congresso teria cometido ao divulgar os chamados “áudios do escândalo”. “Não se pode pedir a vacância sobre uma base embrionária, presumida, duvidosa”, afirmou. “É uma prova ilegal porque não foram seguidos os caminhos normais [na investigação parlamentar sobre os contratos com Cisneros] e não foi convalidada a veracidade dos áudios”, acrescentou. Em seu discurso, Vizcarra afirmou que “a única coisa comprovada até agora foi a gravação clandestina”, e pediu que o Congresso deixe o Ministério Público investigar o que for necessário. Em outro dos áudios divulgados, o chefe de Estado comenta com sua secretária pessoal que era um problema que parentes dela tivessem sido beneficiados com contratos quando ele era governador de Moquegua, no sul do país, e que familiares da secretária-geral da presidência −que renunciou no sábado− tivessem obtido cargos públicos.
Embora o presidente tenha se livrado da destituição, ele tem pela frente mais dez meses de governo afetado pelo descrédito, e não conta com uma bancada no Parlamento. Em um dos áudios divulgados, Vizcarra combina com seu entorno como eliminar os vestígios de algumas visitas de Cisneros à sede do Executivo. Em maio, quando respondeu à imprensa sobre sua ligação com o cantor, disse que era apenas um conhecido da campanha eleitoral de Kuczynski, mas as revelações não apoiam essa versão. Na sexta-feira, a ex-assistente pessoal do atual chefe de Estado e a ex-secretária-geral da presidência passaram à condição de investigadas no caso dos contratos: a primeira, por ocultação de provas em detrimento do Estado; a segunda, por conluio com agravante.
Vizcarra terá de enfrentar, ao mesmo tempo, uma agenda complicada: conter a pandemia de covid-19− o Peru é o país com a maior taxa de mortalidade por 100.000 habitantes− e concluir a reforma política para as eleições gerais de abril. Tanto o Congresso anterior como o atual rejeitaram constantemente modificações nas regras eleitorais que punam o financiamento ilegal de partidos políticos. Além disso, falta aprovar o fim do voto preferencial para permitir a paridade e alternância nas listas de candidatos. Por isso, a tensão entre o Executivo e o Legislativo vai continuar, como ocorre desde março, quando foi empossado o Congresso atual.