Oposição venezuelana dividida aprofunda o desgaste do Guaidó

Aposta de Capriles nas eleições parlamentares aumenta a fragilidade do líder opositor venezuelano, reconhecido como presidente interino por vários países, mas atacado pela incapacidade de apresentar avanços claros em sua agenda

O líder opositor da Venezuela, Juan Guaidó, em Caracas, em 28 de março.Cristian Hernández (AFP)

O retorno de Henrique Capriles à primeira linha da política venezuelana, com sua aposta de participar nas eleições de 6 de dezembro, não somente aumentou as crônicas diferenças na oposição. Também compromete ainda mais o futuro de Juan Guaidó, a quem dezenas de países ainda reconhecem como o presidente interino da Venezuela, um cargo sem poder real no país, ainda que com peso, principalmente à comunidade internacional.

A dificuldade para oferecer uma alternativa à participação eleitoral e a falta de resultados de sua estratégia para retirar Maduro do poder deu voz a um coro de críticos. Ainda mais: a maioria dos venezuelanos perdeu as esperanças no resultado de seus esforços.

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Guaidó, de 37 anos, era praticamente um desconhecido em janeiro de 2019, quando foi nomeado presidente da Assembleia Nacional e tomou posse como presidente interino da Venezuela, cargo reconhecido por aproximadamente 60 países, entre eles os Estados Unidos e grande parte da União Europeia, incluindo a Espanha. Nenhum desses países desistiu de considerá-lo ainda mandatário interino, mas a realidade mostra outro caminho.

Após quase dois anos, a estratégia de Guaidó, que começou o ano recebendo uma homenagem do Congresso dos EUA, quase não deu frutos internos e a criação de uma estrutura paralela, principalmente no exterior ― “Governo de Internet”, disse Capriles ―, levantou muitas dúvidas na Venezuela. A fracassada incursão paramilitar de maio, em que se viu envolvido, foi outro golpe que a manobra de Capriles ajudou a derrubar. Ainda que continue sendo uma referência, a credibilidade de Guaidó desabou.

Tudo indica que Guaidó está jogando contra o relógio no campo de disputa: a possível participação de Capriles nas eleições parlamentares ― vista com bons olhos entre grande parte da diplomacia europeia, incluindo a Espanha ― pode enfraquecer ainda mais suas posições no contexto internacional, seu maior ativo hoje em dia. Por enquanto, Guaidó ainda conta com o apoio irrestrito de Washington.

A cientista política e escritora Colette Capriles opina que o fim de ciclo de Guaidó está se aproximando e, mesmo concentrando uma grande parte da oposição, suas alianças estão comprometidas. “Esse processo pode romper a unanimidade da comunidade internacional em torno a Guaidó. Maduro, ao dividir a oposição, também divide os aliados estrangeiros dos quais Guaidó se tornou muito dependente, especialmente dos EUA”.

“A fresta que deve se abrir, portanto”, diz a cientista política, “é para recalcular, como o fazem os aparelhos de GPS. Uma postergação das eleições, como vários atores colocaram, seria um espaço em que pode se traçar o horizonte de uma saída negociada como a que se estava tentando fazer com a ajuda da Noruega”. A possibilidade de encontrar um final negociado foi mencionado nessa semana pelo Alto Representante exterior da UE, Josep Borrell.

A luta contra o chavismo significou o sacrifício de muitas lideranças ao longo dos últimos anos. Para o cientista político Luis Salamanca, Guaidó vive a natural deterioração da sua. “Quando não se consegue o nocaute, é preciso continuar boxeando para enfraquecer o outro”, diz. “Há um erro de interpretação em pensar que como não se conseguiu o máximo não se conseguiu nada. Guaidó conquistou muitas coisas. A lógica indica que se deve continuar trabalhando”. Salamanca teme um risco ainda maior do que a sobrevivência de Guaidó: “Há um grave perigo de debandada maciça dos partidos e dos membros de oposição. As pessoas já estão muito frustradas”.

Com todas as diferenças, Guaidó reteve durante muitos meses o apoio de quase todos os partidos importantes da oposição. Mas dirigentes mais próximos ao setor de Capriles evidenciam seu incômodo pela tutela de setores conservadores norte-americanos. Alguns dirigentes próximos a Guaidó temem que ocorram deserções a favor de Capriles. O Primeiro Justiça, partido ao que Capriles pertence e um dos partidos fundamentais da unidade oposicionista, teve nesses dias longos debates sobre o anúncio de um de seus líderes fundamentais. Em particular porque entre suas bases há muitas pessoas que consideram que participar das eleições legislativas continua sendo a única opção para enfrentar Maduro.

O chavismo, entretanto, continua dando passos para seduzir os opositores e dividi-los por dentro. Além dos mais de 100 indultos a presos e perseguidos e a carta convidando a UE e a ONU para participar como observadores das eleições, na sexta-feira veio uma decisão do Supremo Tribunal, que deixava sem efeito a nomeação do dissidente Luis Parra como maior representante do Primeiro Justiça, teoricamente retornando o controle do partido aos seus dirigentes, um dos pedidos da oposição. Agora se espera que o mesmo ocorra com o Ação Democrática e o Vontade Popular.

Reconhecer erros

O Primeiro Justiça emitiu um comunicado em que mantinha que não participará das eleições, porque não há condições eleitorais e a pandemia impede sua realização. Mas mesmo lembrando que os que desobedecerem a essa linha serão punidos, o texto lança um ataque a Guaidó: “Devemos reconhecer com humildade uma série de erros e a incapacidade de retificação na condição do Governo interino, que impediu derrotar a ditadura e aliviar o sofrimento dos venezuelanos”. O texto propõe “abrir um debate franco para reconstruir a organização e a atuação da oposição”, o que evidencia que sequer dentro do que é conhecido como G4, que aglutina os principais partidos da oposição, Guaidó tem garantido o respaldo a sua rota.

Para Salamanca, Capriles está procurando a maneira de retomar sua liderança no que sem dúvida será um próximo ciclo à oposição. Mas alerta que, sem Guaidó, não terá força de mobilização, de modo que a unidade continua sendo uma condição necessária. Salamanca diz que o que Guaidó conseguiu é o que em termos militares pode se chamar “cabeça de ponte”, se referindo ao momento em que, se os reforços chegarem, pode se passar da defesa ao ataque.

O desgaste de Guaidó, na opinião do escritor e analista político Pedro Benítez, é completamente lógico e isso não significa necessariamente que o fim de seu ciclo se aproxima. “Guaidó deixou expectativas que não se cumpriram e isso lhe custou apoio. Continua tendo consigo, entretanto, muitas cartas fortes e a mais importante de todas, além do respaldo internacional e latino-americano, é que continua sendo um dirigente popular”.

Colette Capriles aponta um aspecto bem importante: as sanções ao Governo e à cúpula chavista. “Sem elas, Maduro não estaria em condições de ceder nada. O objetivo do chavismo nas eleições é tirar Guaidó do jogo. Se ocorrerem em dezembro conseguiria, até mesmo declarando a continuidade do Governo interino, que seria um Governo no exílio, como já praticamente o é. O prolongamento do Governo interino não tem base jurídica, mesmo que possa ser buscada, mas também não tem base política”.

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