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Legislativo russo abre caminho para que Putin fique no poder até 2036

Projeto de reforma, que ainda precisa ser aprovado em consulta popular, permitirá que o líder russo volte a concorrer à presidência

María R. Sahuquillo
Putin se dirige aos membros da Duma, o legislativo russo, em 10 de março.
Putin se dirige aos membros da Duma, o legislativo russo, em 10 de março.ALEXANDER NEMENOV (EL PAÍS)

A ideia é zerar o contador de mandatos presidenciais de Vladimir Putin. Em meio a uma turbulência política e econômica mundial, o Parlamento russo provocou outro abalo ao apoiar uma opção que permitiria que o líder russo fosse presidente novamente. Em uma proposta inesperada, mas muito coreografada, a deputada Valentina Tereshkova, ex-cosmonauta soviética e primeira mulher no espaço, sugeriu nesta terça-feira eliminar as restrições do líder russo para voltar a disputar eleições depois do fim de seu mandato, em 2024. Se fizer isso e vencer, poderia permanecer no poder até 2036. Em uma aparição urgente e imprevista na Duma (Câmara baixa do Parlamento), o líder russo se mostrou aberto à ideia, citando a necessidade de estabilidade do país. Uma presidência “forte” é “absolutamente necessária para a Rússia”, enfatizou Putin. “A atual situação econômica e de segurança nos lembra disso mais uma vez”, acrescentou.

Com o simbolismo teatral próprio das grandes ocasiões, a ex-cosmonauta Tereshkova lançou a proposta que poderia levar a um quinto mandato de Vladimir Putin. “Tudo deve ser estipulado de maneira franca, aberta e pública: ou eliminar o limite de mandatos presidenciais na Constituição, ou −se a situação exigir e, sobretudo, se as pessoas quiserem− introduzir na lei a possibilidade de que um presidente atual volte a ser reeleito para o cargo, já de acordo com a Constituição renovada”, declarou a deputada do Rússia Unida, o partido do Governo, durante uma rápida sessão na Câmara baixa que debatia emendas à lei fundamental. “Dada sua enorme autoridade, isso seria um fator estabilizador para nossa sociedade”, acrescentou firmemente Tereshkova, que tinha na lapela a medalha de heroína da União Soviética. Pela lei atual, um presidente não pode permanecer no cargo por mais de dois mandatos (seis mais seis anos), e Putin deveria deixar sua poltrona do Kremlin em 2024.

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A proposta transcendental de Tereshkova causou um curto-circuito na Duma, controlada pelo Kremlin. Quase duas horas depois, em um comparecimento histórico e surpreendente, o líder russo foi à Câmara baixa para aproveitar a deixa. Putin, que tem 67 anos e está há duas décadas no poder (entre seus anos de presidente e de primeiro-ministro), não apoiou a ideia de eliminar a limitação de mandatos presidenciais, mas sim de zerar seu próprio contador. “Seria possível se a população votasse a favor, mas será necessária uma decisão do Tribunal Constitucional”, disse Putin, que recebeu uma grande ovação dos deputados.

Os legisladores aprovaram, por maioria esmagadora, o pacote de emendas à Constituição, que desenha um país mais conservador e nacionalista. Além disso, com 380 votos a favor e 44 contra (da facção do Partido Comunista), de um total de 445 cadeiras ocupadas, os deputados da Duma aprovaram também a proposta de último minuto que permitirá que Putin volte a disputar eleições presidenciais em 2024 e possa permanecer no poder até 2036. Teria 83 anos. Um presidente, além disso, com novas atribuições, segundo a reformada Constituição proposta pelo próprio Putin, e maior possibilidade de intervir nos mecanismos de funcionamento das instituições do Estado, explica o especialista em Direito Constitucional Ilia Shablinski, da Escola Superior de Economia.

A votação desta terça-feira, prevista para ser um mero trâmite para aprovar −e organizar− as emendas propostas pelo líder russo, por um grupo de especialistas que o próprio Putin designou e por alguns legisladores da Duma, abriu uma nova possibilidade para a confirmação de um cenário que os analistas apontam há meses: o de que o grande objetivo da reforma da lei fundamental é, na verdade, permitir que Putin permaneça de alguma forma no poder. As emendas devem passar agora por uma terceira votação −talvez nesta quarta-feira. Os eleitores darão sim ou não a todo o pacote −que inclui pontos bastante atraentes, como os de que as aposentadorias aumentem de acordo com a inflação e o salário mínimo seja estabelecido acima da linha de pobreza− em 22 de abril, em uma consulta popular cujo mecanismo ainda não está muito claro.

“Todos entendem perfeitamente que dentro do país, infelizmente, ainda temos muita vulnerabilidade”, disse Putin na Duma, em um discurso teoricamente imprevisto, mas que parecia muito preparado e sincronizado. “A prioridade deve ser a estabilidade”, insistiu, em um momento em que a economia russa atravessa uma grave crise, com a queda do preço do petróleo e o rublo em seu nível mais baixo desde 2014. Um baque derivado da guerra do petróleo e do naufrágio dos mercados pelo medo do coronavírus, que se somou à recessão provocada pelas sanções econômicas impostas à Rússia há seis anos decido à anexação da península ucraniana da Crimeia.

Desde janeiro, quando o líder russo propôs emendar a Constituição −a maior mudança política e legislativa desde os anos 1990−, especulava-se sobre como isso seria feito para permitir que Putin mantivesse sua influência. Os analistas e grande parte da oposição apostavam que ele ficaria à frente de um Conselho de Estado renovado e muito mais poderoso. Agora, reveladas suas cartas, parece que a aposta de Putin era mais simples: voltar a disputar eleições presidenciais e permanecer no Kremlin.

Com a manobra “estratégica” desta terça, aponta a analista política Tatiana Stanovaia, Putin não só elimina todos os rumores e o debate sobre sua sucessão, como também deixa muitas expectativas. “Se pensa na história, como mencionou, ele gostaria de limitar os mandatos de qualquer presidente. Mas quando se trata dele, quer ter mais espaço e mais opções para escolher qualquer cenário que deseje”, assinala Stanovaia, diretora da empresa de análise R. Politik. O líder russo, entretanto, não disse se voltará a concorrer à presidência dentro de quatro anos. “Tenho certeza de que faremos muito mais coisas juntos, pelo menos até 2024. Aí veremos”, afirmou.

A oposição extraparlamentar, que há semanas vem denunciando um “golpe de Estado”, criticou nesta terça-feira o novo cenário e prepara uma manifestação de protesto contra a proposta.

Publicamente, Putin vinha descartando havia meses uma via que lhe permitisse permanecer no Kremlin. Mesmo em janeiro, quando um veterano da Segunda Guerra Mundial lhe pediu que ficasse na presidência, o líder russo descartou a ideia, afirmando que não desejava uma “regressão aos tempos da União Soviética”. Nesta terça, Putin comentou aquela declaração. “Devo admitir que [aquela observação] não foi correta, porque durante os tempos da URSS não houve eleições; tudo era decidido em segredo ou como resultado de procedimentos ou intrigas internas do partido”, disse ele na Duma. “Agora a situação é completamente diferente, precisamos ir às urnas”, acrescentou. Se as mudanças esboçadas agora se consolidarem e Putin for reeleito em 2024, acumularia 18 anos seguidos no poder e, no mínimo, 26 no total. Cumprindo o espírito que, como apontou dias atrás, ele considera que o cargo tem: “Não é só um trabalho, mas um destino”.

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