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Selfie na câmara de gás

Prestes a se completar 75 anos da libertação de Auschwitz, o campo atrai milhares de turistas. Alguns ignoram as normas de respeito estabelecidas pelo recinto

Visitantes na entrada do antigo campo de concentração de Auschwitz I, no sábado.
Visitantes na entrada do antigo campo de concentração de Auschwitz I, no sábado.Kay Nietfeld (Getty Images)
Jacinto Antón

Na segunda-feira, 27 de janeiro, completam 75 anos da libertação do campo da morte de Auschwitz e seu imenso anexo de Birkenau pelas forças do Exército soviético pertencentes à primeira frente ucraniana. Esses soldados foram testemunhas de um horror indescritível e descobriram o pior da máquina da morte nazista. Na sexta-feira, às vésperas da comemoração oficial da data, que reunirá chefes de Estado e sobreviventes, outro grupo chegava a Auschwitz – transformado em 1947 em monumento e museu e em 1979 em patrimônio mundial da Unesco – para conhecer em primeira mão o espanto. Por volta de setenta espanhóis das mais variadas idades, ainda que com predominância de jovens, embarcavam em Cracóvia em um ônibus turístico que todos os dias organiza a visita ao campo.

A maioria ignorava o aniversário e colocou a excursão como uma extensão de sua estadia na cidade polonesa, o que é bem comum (a ida ao campo costuma ser combinada com a visita às minas de sal de Wieliezka e, de maneira mais pertinente, à fábrica de Schindler, famosa pelo filme de Spielberg). Compartilhar a viagem com esse microcosmos da sociedade permitiu observar como se vive e quais efeitos provoca uma experiência semelhante em pessoas comuns. Geralmente muito impactados pela visita, uma minoria a tomou como mais um destino turístico, selfies incluídas, o que alerta nesses dias de reflexão de que diante do Holocausto e dos crimes nazistas não existe somente o perigo do negacionismo, e sim também o da banalização.

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De fato, Auschwitz se transformou em um importante destino turístico, com 2.320.000 visitantes no ano passado, 8% de aumento em relação a 2018, que já marcou um recorde. Como conjugar o grande número de visitas, e o negócio turístico montado ao redor delas (há empresas que incluem um drinque em Cracóvia na volta), com o respeito que merece um lugar que é para todos os efeitos um cemitério (o maior do mundo) e uma das maiores expressões do sofrimento humano na Terra, é um verdadeiro desafio às autoridades polonesas, os guias e os vigilantes do monumento.

A viagem de ônibus começou às 7h, com temperatura de 4 graus negativos, ainda de noite, e com uma etiqueta colorida para identificar o grupo. As informações a bordo por parte das duas guias polonesas e a passagem do eloquente documentário de 20 minutos filmado pelo cinegrafista do exército soviético capitão Alexander Woronzow que mostra o ambiente no campo na chegada dos libertadores – inclui imagens de fossas comuns e de pilhas de cadáveres, alguns parcialmente queimados – calou qualquer conversa. Pela janela aparecia uma paisagem que mudou pouco de campos de cultivo e bétulas sem folhas arranhando o céu como em um poema de Paul Celan enquanto a terra lutava para se descongelar. Um jovem mordiscava em silêncio uma bolacha. Chegando após pouco mais de uma hora a Auschwitz I (o campo mãe, a visita inclui depois o gigantesco campo de Auschwitz II Birkenau, a 3 quilômetros, o local das grandes matanças), insistiram nas regras: não se pode comer e beber com exceção de água no campo, é preciso sempre mostrar o devido respeito ao local – não falar alto e não fazer brincadeiras e risadas – e há espaços e objetos que não podem ser fotografados. As fotos feitas devem ser sempre de tipo documental.

O heterogêneo grupo, abrigado com casacos de esquiar, gorros, cachecóis e luvas, não podia oferecer maior contraste com a realidade dos presos que estiveram nos campos, vestidos com roupas muito precárias, os famosos uniformes listrados, e calçados com gastos tamancos de madeira recheados de palha. Após um controle exaustivo incluindo um detector de metais, o grupo, munido de fones de ouvido para escutar as guias, começou a visita, que se inicia passando entre as cercas sob a porta com o famoso lema Arbeit Macht Frei (O Trabalho Liberta). O percurso continua por vários blocos, transformados em salas de museu e ao qual confluem grupos de diversas nacionalidades em um impressionante ajuntamento.

A história do genocídio nazista e o processo de extermínio são contados com admirável capacidade de síntese, com alguma concessão ao patriotismo polonês, ainda que sem deixar de reconhecer o enorme sofrimento dos judeus, 90% (1,1 milhão) dos 1,3 milhão assassinados em Auschwitz (150.000 poloneses), e um pouco aos russos. A utilização de capacetes faz com que o visitante fique muito compenetrado. As reações variam, mas geralmente são de profunda tristeza e de horror. “Eu me impressionei muito com os mostruários com cabelo e os das próteses, e os dos sapatinhos de crianças”, disse depois uma jovem catalã que visitava o campo com amigas. “Sabia o que havia acontecido aqui, mas vê-lo no local e os objetos... É angustiante”. Um homem adulto não conseguiu aguentar o percurso e ficou completamente transtornado.

Outros visitantes do grupo, entretanto, lidavam com a visita de outra forma. Uma mulher falou no celular quase o tempo todo. E três casais tiravam fotos, juntos e separados, em todos os locais, enviando depois as fotos ao Instagram. Um desses casais protagonizou o momento mais vergonhoso ao se fotografar posando dentro da pequena câmara de gás de Auschwitz I – onde foram assassinados prisioneiros soviéticos e judeus da Silésia antes de entrar em funcionamento o complexo de Auschwitz II-Birkenau. Monika, a guia, avisada por um colega, deu uma bronca nos autores e exigiu que apagassem a foto (não o fizeram). “Uma foto na câmara de gás, quem tem uma ideia dessas!”, falou depois. “Hoje foram espanhóis, mas pessoas de todas as nacionalidades o fazem, é difícil impedir com tanta gente”.

Na visita a Birkenau, a três quilômetros, o controle é ainda mais difícil, por ser um terreno imenso e os visitantes se espalharem. De fato, outros casais do grupo utilizaram até mesmo um pau de selfie para tirar uma foto de família diante dos barracões enquanto reclamavam não poder fazê-lo diante da simbólica porta de entrada do campo pela qual passavam os trens à plataforma de seleção, de onde as vítimas eram levadas às câmaras de gás e aos crematórios. O grande arco e toda a estrutura se encontram por esses dias sob uma gigantesca tenda branca em que ocorrerá na segunda-feira parte da cerimônia do aniversário da libertação do campo.

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