Mulheres cansadas da minimização dos riscos de trombose e embolia com a pílula anticoncepcional

Após relatos associados à aplicação da vacina da AstraZeneca, ressurge o debate sobre a chance de formação de trombos devido ao uso de contraceptivos

“Quando me receitaram a pílula, não me perguntaram nada. Nem sequer se era fumante ou se minha na família havia histórico de tromboembolia ou problemas de coagulação. Depois de 10 dias tomando Sibilla, às três da madrugada senti uma forte ...

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“Quando me receitaram a pílula, não me perguntaram nada. Nem sequer se era fumante ou se minha na família havia histórico de tromboembolia ou problemas de coagulação. Depois de 10 dias tomando Sibilla, às três da madrugada senti uma forte dor no pulmão. Liguei para o 112 [número do Samu na Espanha] e me disseram para tomar um paracetamol porque provavelmente não era nada. No dia seguinte, como ainda me sentia mal, deitei-me na cama depois de comer e quando me estiquei senti uma dor horrível. Comecei a gritar e a chorar de dor. No hospital, disseram-me que eu tinha um trombo pulmonar”, explica Laura López, de 23 anos, que mora em Barcelona.

Após a suspensão da aplicação da vacina da AstraZeneca durante vários dias em países da Europa houve muito debate sobre o risco/benefício de sofrer uma tromboembolia como consequência da administração dessa vacina. Até o momento, e conforme informou a Agência Europeia de Medicamentos (EMA na sigla em inglês), 30 dos mais de cinco milhões de pessoas vacinadas com as doses deste fabricante sofreram um trombo. No entanto, embora a última avaliação farmacológica da EMA tenha considerado a trombose um dos “efeitos secundários muito raros” da vacina da AstraZeneca, o ruído gerado em torno da questão serviu para abrir outro debate: Por que não existe a mesma preocupação quanto ao risco/benefício de tomar a pílula, medicamento que inclui a tromboembolia como um dos possíveis efeitos adversos?

Segundo a bula da pílula receitada a Laura López, os coágulos sanguíneos podem afetar 1 em cada 1.000 usuárias desse anticoncepcional. Da mesma forma, as bulas de outros fabricantes de pílulas anticoncepcionais como Yaz ou Belara apresentam a mesma estatística e outros como EvaLuna estimam o risco de sofrer um trombo em 1 em cada 10.000 usuárias. Ou seja, embora esse efeito adverso seja classificado como “raro” ou “muito pouco frequente”, a probabilidade é muito maior do que a associada à vacina quando foi suspensa (30 trombos em 5 milhões de vacinados).

A pílula anticoncepcional é um medicamento que, além de ser utilizado como ferramenta na prevenção da gravidez indesejada, também é prescrito para tratar distúrbios hormonais ou simplesmente para melhorar os sintomas de transtornos como a síndrome do ovário policístico.

“A pílula é um tratamento que serve para tratar o sintoma de forma imediata. Ou seja, todos os problemas decorrentes de um distúrbio hormonal (irregularidade menstrual, acne, hirsutismo etc.) desaparecem ao tomá-la porque criamos uma nova ordem hormonal artificial. Mas isso não significa que o distúrbio hormonal subjacente tenha sido resolvido. O problema de base continua presente, mas como vivemos em uma sociedade imediatista, esta é uma opção amplamente utilizada. Não é que a culpa seja do médico ou da paciente, mas é uma consequência mais da estrutura social em que vivemos, onde queremos uma solução rápida para que os sintomas desapareçam e assim continuar com nossas vidas”, comenta a ginecologista Miriam Al Adib.

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Para ela, um dos principais problemas que cercam a saúde da mulher é a falta de informação e de educação sexual. Muitas mulheres tomam a pílula sem saber que um dos efeitos adversos são os trombos, o que dificulta avaliar com objetividade se querem ou não fazer esse tratamento.

“Não tenho nada contra nem a favor do anticoncepcional. É um medicamento e como tal tem suas indicações e contraindicações, que fazem com que algumas pessoas não possam tomá-lo. E também tem seus benefícios e seus efeitos adversos. Com todas essas informações colocadas na balança, cada mulher deveria ser capaz de decidir como deseja abordar sua saúde. Acredito que não é um problema de se são bons ou ruins, mas de se a pessoa que o toma sabe por que está tomando e como esse fármaco age em seu corpo. Se a mulher sabe e aceita, perfeito. Se sabe e não quer correr esse risco/benefício, perfeito também. Não toma e pronto. Se dermos todas as informações, incluindo os riscos e benefícios, cada uma decidirá se assume ou não esses efeitos colaterais muito raros”, reflete a ginecologista, e enfatiza que “nós, mulheres, não somos meninas e, como tal, não podemos continuar nesse papel infantilizado de ter de acatar tudo o que um médico nos diz”.

Da mesma forma, antes de prescrever um anticoncepcional, Al Adib afirma que uma avaliação pessoal, clínica e analítica sempre deve ser feita para descartar possíveis contraindicações: “Por exemplo, se você tem mais de 35 anos e é fumante, já de entrada não seria conveniente tomar a pílula. Se você tem um histórico de tromboembolia em parentes com menos de 50 anos é necessário fazer um teste de coagulação para ver se não há risco protrombótico. Ou seja, além de fazer um exame de sangue, é preciso conhecer o histórico e os hábitos dessa mulher”, diz Al Adib.

Essa ausência de avaliação pessoal e clínica é exatamente o que mais incomoda Paloma, uma mulher de 40 anos à qual receitaram anticoncepcionais sem perguntar-lhe sobre seus antecedentes familiares nem fazer-lhe um exame de sangue para descartar possíveis problemas de coagulação.

“Tive uma tromboembolia pulmonar maciça aos 32 anos. E posso responder a essas perguntas graças ao fato de ter cruzado o meu caminho uma médica que resolveu fazer um exame a mais no pronto-socorro, no qual descobriram que eu tinha trombos nos dois pulmões”, comenta Paloma, que, depois de ter sofrido esse episódio, reconhece ter iniciado sua cruzada particular contra a pílula porque, do seu ponto de vista, “nem todos os médicos alertam adequadamente sobre os riscos”.

Laura López também denuncia que ninguém a avisou das contraindicações nem lhe fez um exame de sangue: “Também não me perguntaram se eu era fumante e naquela época eu consumia um maço a cada dois dias. No consultório do ginecologista ninguém me informou que isso poderia acontecer comigo e se tivessem me falado sobre isso talvez não tivesse ficado um mês internada no hospital em decorrência de um derrame pleural que sofri depois do trombo”, reflete Laura.

“Embora ainda sinta dor quando rio ou me deito de lado, há algumas semanas me disseram que o trombo já havia se dissolvido completamente. Mesmo assim, estou fazendo tratamento anticoagulante. Tenho 23 anos e já estou tomando Sintrom”, acrescenta.

Existem alternativas que podem melhorar os distúrbios hormonais?

Miriam Al Adib destaca que no caso da síndrome do ovário policístico, por exemplo, outra série de medidas pode ser tomada para melhorar seus sintomas: “Por ser um distúrbio hormonal muito heterogêneo, as mulheres que sofrem dele não têm por que apresentar todos os sintomas. Enquanto algumas têm apenas regras irregulares, em outras o problema se manifesta na forma de muita acne ou de penugem com uma distribuição não tipicamente feminina. Ou seja, o mosaico de manifestações é muito variável, razão pela qual dependendo dos sintomas que precisamos tratar, podemos focar o tratamento de uma forma ou de outra”, explica.

“Se eu tenho uma paciente com síndrome do ovário policístico e a única coisa que ela tem são quatro espinhas e regras a cada 40 dias, não há problema. Vamos deixar assim. É mais uma variante dentro da normalidade. Não há nada para tratar. Se, pelo contrário, tenho outra que apresenta regras a cada três meses, podemos propor um tratamento com progesterona toda vez que tiver atraso menstrual. Dessa forma fazemos com que a menstruação se inicie e com isso descamamos o endométrio, o que nos ajuda a prevenir a hiperplasia no longo prazo”, completa a ginecologista.

E este é precisamente o outro ponto crucial da questão e uma das queixas mais repetidas pelas mulheres que participaram do especial Menstruação que a rádio online Primavera Sound transmitiu no verão passado no qual as participantes perguntavam por que lhes receitavam um medicamento tão forte simplesmente para normalizar algumas regras que talvez, como bem descreve Miriam Al Adib, em alguns casos não eram tão anômalas.

Do ponto de vista da contracepção, cabe destacar que, até o momento, a Organização Mundial da Saúde (OMS) inclui apenas dois métodos direcionados aos homens: o preservativo e a vasectomia, o que leva muitas de nós a perguntar por que não existe também uma pílula masculina que apresente esta alternativa farmacológica de forma equânime em um casal heterossexual.

De acordo com a BBC em um artigo publicado há poucos dias, dois protótipos da pílula masculina foram criados até o momento. Por um lado, um método hormonal que interrompe o desenvolvimento de espermatozoides saudáveis e, por outro, um método não hormonal cujo objetivo é impedir que os espermatozoides entrem na vagina.

Embora ambas as opções sejam perfeitamente realizáveis, o professor de biologia reprodutiva da Universidade de Nottinghan, Adam Watkins, explicou à BBC por que o desenvolvimento deste fármaco não chegou a lugar algum depois dos resultados obtidos em um estudo realizado em 2016: “Observou-se que havia efeitos colaterais como espinhas na pele, transtornos de humor e aumento da libido, complicações que os homens consideraram demasiado severas e intoleráveis, fazendo com que a pesquisa fosse cancelada”.

Como muitas mulheres sabem, além do risco de tromboembolia, a pílula feminina inclui entre os efeitos colaterais frequentes transtornos de humor como depressão ou ansiedade, dor de cabeça, retenção de líquidos, náuseas ou diminuição da libido, sintomas que longe de serem agradáveis também poderiam ser considerados “intoleráveis”.

“Desde que tive o trombo tenho falado bastante sobre o meu caso porque não quero que aconteça com mais gente e, ao fazer isso, percebi que há muito silêncio sobre o assunto. Falei com ginecologistas a esse respeito e, exceto em alguns casos, em geral todos lavaram as mãos dizendo que os trombos são muito improváveis. E pronto. Há muito pouca chance de que isso aconteça, mas se acontecer você pode morrer por causa de uma pílula e, se soubesse desse risco, talvez não a tivesse tomado. Nós, que sofremos esse problema, também existimos”, conclui.

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