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Tostão: “Superliga vai contra o espírito do futebol ao se assumir apenas como negócio. Uma vergonha”

Ex-jogador da seleção brasileira, Tostão considera que novo torneio é “um absurdo” e deixa futebol mais elitizado. Na Inglaterra, torcedores protestam e seis clubes oficializam desistência, dinamitando iniciativa

Torcedores do Chelsea protestam em frente ao estádio do clube: "Cancelem a Superliga"
Torcedores do Chelsea protestam em frente ao estádio do clube: "Cancelem a Superliga"Rob Pinney (Getty Images)
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(FILES) In this file photo taken on December 3, 2018 Real Madrid's president Florentino Perez poses upon arrival at the 2018 Ballon d'Or award ceremony at the Grand Palais in Paris. - Twelve of Europe's most powerful clubs announced the launch of a breakaway European Super League on April 19, 2021 in a potentially seismic shift in the way football is run, but faced accusations of greed and cynicism. Six Premier League teams, Liverpool, Manchester United, Arsenal, Chelsea, Manchester City and Tottenham are involved, alongside Real Madrid, Barcelona, Atletico Madrid, Juventus, Inter Milan and AC Milan. Real Madrid chief Florentino Perez, who was announced as the first ESL president, said the breakaway reflected the big clubs' wishes. (Photo by FRANCK FIFE / AFP)
A bomba econômica da Superliga europeia de futebol: 7 bilhões de euros para os clubes mais ricos
Oct 11, 2020; Lake Buena Vista, Florida, USA; Los Angeles Lakers forward LeBron James (23) dribbles while defended by Miami Heat guard Tyler Herro (14) during the first quarter in game six of the 2020 NBA Finals at AdventHealth Arena. Mandatory Credit: Kim Klement-USA TODAY Sports
Os grandes do futebol europeu querem imitar os Lakers
Liverpool (United Kingdom), 14/04/2021.- Real Madrid players observe a minute of silence to mark the 32nd anniversary of the Hillsborough disaster ahead the UEFA Champions League quarter final, second leg soccer match between Liverpool FC and Real Madrid at Anfield in Liverpool, Britain, 14 April 2021. (Liga de Campeones, Reino Unido) EFE/EPA/Peter Powell
Guerra total no futebol europeu: nasce a Superliga

“Um grupinho que quer dominar o futebol contra a vontade da maioria.” É assim que Tostão, ex-jogador da seleção brasileira e campeão do mundo em 1970, define os 12 clubes europeus —Atlético de Madrid, Barcelona, Real Madrid, Arsenal, Chelsea, Liverpool, Manchester City, Manchester United, Tottenham, Juventus, Internazionale e Milan— que começaram a semana tentando romper com as bases do futebol europeu. Causando um furacão de reações por parte de apaixonados pelo esporte mais popular do mundo, foram esses os times que anunciaram a criação de uma nova competição, a Superliga da Europa, prevendo um regulamento com participantes fixos que ignoram o mérito esportivo por um único objetivo: ganhar ainda mais dinheiro.

A ideia da Superliga é substituir a Champions League, atual torneio mais importante disputado pelos clubes europeus, por um campeonato mais lucrativo e com participação dos mais ricos de Inglaterra, Espanha e Itália, independente de classificação em suas ligas nacionais. Hoje, os times precisam ficar entre os primeiros destas ligas para jogarem o torneio europeu. As razões são econômicas: só de entrar para a Superliga, os clubes poderiam ganhar até 7 bilhões de euros, contando direitos de transmissão e patrocínios. Só o Barcelona, por exemplo, chegou a 1 bilhão de euros em dívidas no último ano. “Um Barcelona x Manchester é mais divertido do que um Manchester contra um time mais modesto da Champions”, defendeu Florentino Pérez, presidente do Real Madrid. O maior argumento a favor dos fundadores é planejar um calendário cheio de jogos entre grandes que seriam, na visão dos cartolas, mais atrativos do que o modelo atual e, portanto, mais lucrativos. “O que o mundo inteiro exige? Temos fãs em todo o mundo. Isso é o que gera dinheiro. E esse dinheiro é para todos, é uma pirâmide. Quando digo salvar o futebol, é salvar a todos.”

Pérez foi o escolhido pelos dirigentes europeus para chefiar o projeto da Superliga. Para justificar a ideia, ele também citou uma suposta redução do interesse dos jovens pelo esporte: “40% de quem tem entre 16 e 24 anos já não têm interesse por futebol. Porque existem muitos jogos de baixa qualidade e não lhes interessa, têm outras plataformas para se distraírem”.

Tostão rebate esse argumento dando uma dimensão maior ao papel do futebol. “Esses dirigentes não têm noção de que o esporte é uma questão social, cultural, histórica e apaixonante, não apenas econômica. O futebol já é elitizado, caro para a maioria das pessoas, e vai ficar mais ainda. São esses clubes que já concentram o dinheiro e compram os jogadores mais caros.” Para ele, a ideia de que os jovens não se interessam por futebol é parte do jogo. “Eu acho que 40% é até muito. Com tanta coisa prazerosa na vida, ele quer que todos os jovens gostem de futebol?”, brinca.

Na sua carreira, Tostão jogou pelo Cruzeiro, Vasco e seleção brasileira, com a qual venceu a Copa do Mundo de 1970 vestindo a camisa 9, como parceiro de Pelé no ataque. Desde que se aposentou, se formou em medicina, trabalhou em diversas emissoras como comentarista e hoje, aos 74 anos, escreve colunas semanais sobre futebol, nacional e internacional, para a Folha de S. Paulo. “Eu sei que não vai ser como no meu tempo”, diz ele ao relembrar da época mais romântica e menos lucrativa do jogo, “e temos que aceitar que o futebol também é negócio, que o grande clube não vai fazer caridade. Mas é preciso conciliar melhor os interesses esportivos e econômicos. Precisa existir um incentivo para que o time pequeno possa crescer e para que o futebol seja mais democrático, o que é o contrário do que estão fazendo”. Ao ver nascer um torneio sem acesso e nem rebaixamento, onde o recorte atual dos mais ricos é suficiente para definir vagas cativas, ele conclui que “a Superliga vai contra o espírito do futebol, porque assume que ele é apenas um negócio. Considero um absurdo, uma vergonha”.

Ao lado de Tostão, outras personalidades do futebol mundial se posicionaram publicamente contra a Superliga. Na Inglaterra, o Príncipe William, segundo na sucessão do trono, e o primeiro-ministro Boris Johnson compartilharam preocupações com os rumos do futebol europeu. “Devemos proteger toda a comunidade do futebol e os valores da competição e da justiça em sua essência”, escreveu em seu Twitter o Duque de Cambridge. Após a repercussão negativa, o Manchester City foi o primeiro clube a oficializar o “procedimentos de saída” do grupo fundador da Superliga, às 17h30 (horário de Brasília); antes, seu treinador, Pepe Guardiola, já havia dito que “não é um esporte se o sucesso não está garantido”. O City puxou a fila inglesa de arrependidos, seguido por Manchester United, Arsenal, Tottenham, Liverpool e Chelsea. “Nós erramos e pedimos desculpas”, sintetizou o comunicado do Arsenal. Jürgen Klopp, treinador do Liverpool, também criticou o novo torneio, e foi apoiado por todos os jogadores do elenco principal com contas nas redes sociais, que publicaram a mensagem “nós não gostamos e não queremos que [a Superliga] aconteça”.

No Brasil, Daniel Alves e Miranda, jogadores do São Paulo com passagens por Internazionale, Atlético de Madrid, Barcelona e Juventus, também publicaram em suas redes sociais: “Futebol transforma vidas. Não permitamos que cartolas estraguem essas possibilidades de pequenos seguirem sonhando”, escreveu Alves. UEFA e FIFA, federações colocadas de lado na criação do torneio, ameaçaram punir os 12 fundadores nos atuais torneios europeus, que ainda estão em andamento, e a vetar os atletas que jogarem a Superliga de atuarem por suas seleções.

"Torcedores do Liverpool contra a Superliga europeia", diz cartaz colocado a frente do estádio do clube inglês.
"Torcedores do Liverpool contra a Superliga europeia", diz cartaz colocado a frente do estádio do clube inglês.CARL RECINE (Reuters)

A reação das torcidas tampouco favoreceu os ricos dirigentes. Estádios espanhóis, ingleses e italianos, onde jogam os envolvidos, foram tomados por faixas de protesto de torcedores. Antes do jogo do Chelsea, em Londres, pelo campeonato inglês, torcedores se uniram para impedir o ônibus de entrar no estádio enquanto gritavam contra a decisão do clube. Poucas horas depois, ao saírem as primeiras notícias de que o Chelsea abandonaria os 12, os torcedores comemoraram como “um gol na Champions League”, conforme relatou um dos presentes. “Tenho esperança que essa resistência não deixará a Superliga acontecer”, comenta Tostão. “E o melhor jeito de resistir é com o mundo do futebol protestando. Os torcedores não querem perder essa ligação porque isso é uma parte da vida deles”.

Com os rumos mais recentes apontando para mais desistências ―até a publicação desta reportagem já eram seis dos 12―e a implosão da cúpula liderada por Florentino Pérez, foi divulgado que dirigentes dos 12 clubes deveriam se reunir ainda nesta terça para decidir sobre o futuro da Superliga. “Mesmo que não dê certo, essa queda de braço vai trazer alguma reforma para o futebol europeu, e eu torço para que isso aconteça. Ser contra a Superliga não quer dizer que o modelo atual está ótimo”, opina Tostão. Para ele, novas mudanças passam por um calendário mais organizado e mais condições a todos os times de oferecerem mais qualidade, e devem trazer impactos no Brasil à “turma grande” que acompanha o futebol europeu. “Não são fanáticos, mas gostam de ver bons jogos”, diz ele. “É inevitável pensar que alguns clubes dominem o futebol, mas o negócio precisa ser rentável para grandes, médios, pequenos e todos os seus torcedores”, finaliza.

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