Ricos e celebridades como Neymar assumem risco de espalhar vírus com viagens e festas de fim de ano
Beirando 200.000 mortes por covid-19, Brasil vê ídolo do futebol planejar aglomeração em mansão no Rio. Na Bahia, congestionamento de jatinhos e guerra de liminares sobre baladas
Uma confraternização de grandes proporções, com direito a cerimonial e shows musicais. O megaevento programado por Neymar no complexo de sua mansão em Mangaratiba, litoral do Rio de Janeiro, reavivou o debate sobre as festas de fim de ano no Brasil. Quando o país se aproxima da marca de 200.000 mortes por covid-19 e a curva de infectados volta a acelerar perigosamente na maioria dos Estados, nem mesmo celebridades como o principal jogador brasileiro em atividade se furtam em promover aglomerações por meio dos tradicionais encontros de Natal e Réveillon. No sul da Bahia, o Governo do Estado trava na Justiça uma batalha para evitar baladas privadas promovidas por turistas que chegam à região especialmente de aviões particulares.
Inicialmente planejada para 500 convidados, a balada do craque não foi cancelada, apesar da repercussão negativa nas redes sociais. Após a assessoria de Neymar negar a realização da festa, a Fábrica, agência que promove eventos para empresas e personalidades, confirmou a celebração para “aproximadamente 150 pessoas” em Mangaratiba. De acordo com a empresa, que se define como produtora de “experiências inexplicáveis e encontros inesquecíveis”, o festejo com duração prevista de cinco dias cumprirá “todas as normas sanitárias determinadas pelos órgãos públicos”.
A Prefeitura de Mangaratiba, que reativou as barreiras sanitárias na cidade desde o último dia 23 de dezembro, diz não ter competência legal para impedir celebrações em residências, mas cancelou as festas de fim de ano em espaços públicos e proibiu a realização de eventos com música ao vivo ou eletrônica em estabelecimentos comerciais e privados. Para festividades que não dependam de autorização municipal, os organizadores devem restringir a lotação e garantir o cumprimento dos protocolos de saúde.
Em comunicado divulgado nesta segunda-feira, a Prefeitura informa que “não foi oficialmente notificada da festa e que um evento para 500 pessoas deveria, ao menos, ter sido avisado aos órgãos responsáveis do município”. Mais preocupada em preservar a imagem de Neymar do que com o agravamento da pandemia, a Fábrica, além de não citar o nome do jogador na nota sobre a festa, teria advertido convidados sobre o veto a celulares e ao compartilhamento de imagens do evento.
Para Helio Bacha, consultor da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI), eventos como o de Neymar refletem a conivência do Governo Federal e autoridades locais com comportamentos de risco em meio à pandemia. “Não vemos nenhum alerta em relação a essas festas de fim de ano, nenhuma orientação efetiva por parte dos governantes. Pelo contrário, há um silêncio total diante da repetição desses eventos. Isso quando as próprias autoridades não incentivam aglomerações”, afirma o infectologista. No fim de semana que antecedeu o Natal, o influenciador Carlinhos Maia promoveu uma grande festa em Penedo, interior de Alagoas. Depois do evento, alguns convidados, a exemplo da também influenciadora Mileide Mihaile, testaram positivo para covid-19.
Maia, que tem mais de 20 milhões de seguidores somente no Instagram, reconheceu o erro de suscitar aglomeração de pessoas sem máscara, mas justificou que é “melhor que fazer uma coisa na hipocrisia e ficar fingindo por trás das câmeras”. Por sua vez, Neymar, que soma 265 milhões de seguidores em suas redes sociais, ainda não se manifestou sobre a festa em Mangaratiba. “Uma pessoa célebre com os pés, mas nula com a cabeça”, define Helio Bacha ao condenar a postura do jogador ao promover o evento. “O aumento de novos casos de coronavírus assusta. Janeiro promete ser um mês pesado pelo agravamento da pandemia, potencializado pelos encontros de fim de ano. As autoridades estão muito lentas em coibir essas aglomerações. Fingem agir, mas não impõem o cumprimento de decretos. Sem contar as que ainda são propagandistas da negação sobre vírus e vacina.”
Neymar é um dos jogadores de futebol que já demonstraram publicamente apoio ao presidente Jair Bolsonaro, principal negacionista da pandemia e desestimulador de medidas restritivas no país. Nesta segunda-feira, o mandatário compareceu a uma partida beneficente na Vila Belmiro, em Santos, que conta com o suporte do clube que revelou Neymar. Na véspera de Natal, Bolsonaro participou de um jantar com empresários em Santa Catarina e, novamente, provocou aglomeração ao cumprimentar apoiadores na rua. O presidente não usava máscara de proteção em nenhuma das aparições.
Infectado pelo coronavírus no início de setembro, Neymar cumpriu quarentena de 10 dias antes de retomar os treinamentos com o PSG. No início da pandemia, ele compartilhou vídeo com uma salva de palmas dedicada aos profissionais de saúde e integrou uma campanha da ONU pregando o isolamento social em nome de “todos aqueles que trabalham duro para facilitar nossa vida no dia a dia”. Chegou a ser acusado de furar a quarentena ao convidar vários amigos para sua mansão da Mangaratiba, mas sua assessoria se apressou em informar que, apesar do contato com pessoas próximas, o atacante “jamais desrespeitou as regras de distanciamento social recomendadas pela OMS”.
Recentemente, cercado por muitas cobranças pela falta de engajamento em causas sociais, o craque incorporou o discurso antirracista após ter sido alvo de um insulto discriminatório no Campeonato Francês. Devido ao fato de a pandemia acumular os maiores índices de mortalidade entre pessoas negras e pobres, influenciadores cobram mais responsabilidade de Neymar diante do desprezo pelo potencial de contaminação em eventos como o que planeja realizar neste fim de ano —a Organização Mundial da Saúde recomendou o cancelamento das confraternizações de Natal e Réveillon. “O jogador que ontem foi considerado adulto porque postou um ‘black lives matter’, hoje esbanja fortuna bancando festa para 500 cabeças, cuspindo na pandemia cujas as maiores vítimas são pessoas pretas e pobres”, criticou o teólogo e ativista Ronilson Pacheco.
Segundo o deputado federal Alexandre Padilha (PT-SP), influenciadores e celebridades que promovam grandes eventos como Carlinhos Maia e Neymar podem ser enquadrados por crime sanitário, a depender das regras estabelecidas pelos órgãos locais, sobretudo se houver comprovação de que a festa tenha sido fonte de infecção do vírus. “É uma irresponsabilidade sem tamanho”, disse o ex-ministro da Saúde.
Decreto e guerra de liminares
No começo da pandemia, em março, a Procuradoria-Geral da Bahia abriu representação contra um empresário que teria viajado em avião particular para sua residência, em Porto Seguro, após testar positivo para coronavírus e não comunicar às autoridades. Dias antes, ele foi um dos convidados presentes no casamento da irmã da influenciadora Gabriela Pugliesi, um dos primeiros eventos com registro de contaminação em massa no país. “Uma atitude irresponsável e negligente”, qualificou o governador Rui Costa.
Em um repique de comportamentos que levaram ao surto inicial de casos em solo brasileiro, ricos e celebridades causam preocupação em cidades litorâneas, dessa vez pelos eventos suntuosos de Réveillon. O aeroporto de Trancoso, distrito turístico de Porto Seguro, registrou picos de pouso de jatinhos privados no último fim de semana. No sábado, a polícia interrompeu festa com cerca de 200 pessoas em um dos condomínios mais luxuosos da região.
Os eventos de fim de ano, públicos e particulares, estavam proibidos no Estado por um decreto. No caso especificamente de Porto Seguro, o Governo baiano conseguiu uma liminar da juíza plantonista no Tribunal de Justiça da Bahia, Zandra Anunciação Alvarez Parada, na última sexta-feira reforçando a proibição e impondo multa a quem descumprisse. Nesta segunda-feira, no entanto, o juiz Rogério Barbosa liberou a realização de eventos para até 200 pessoas, “desde que respeitadas as orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS)”. O Governo da Bahia anunciou que vai lutar contra a determinação, que “desrespeita decisão previamente concedida pelo plantão do Tribunal de Justiça do Estado, cuja hierarquia decisória é evidente e coloca a saúde da população, em época de pandemia, em segundo plano, em detrimento de interesses outros, inalcançáveis à Administração Estadual”.
Na Bahia, o coronavírus já matou quase 10.000 pessoas. Na região do Extremo Sul bahiano, há UTI com dedicação exclusiva ao atendimento de pacientes covid-19 em 3 municípios: Eunápolis (ocupação atual de 85%), Porto Seguro (ocupação nesta segunda-feira de 80%), Teixeira de Freitas (lotação de 80%). A taxa de ocupação da região como um todo é de 82%. A questão é que os leitos para terapia intensiva são calculados com base na população local, e não no contingente até sete vezes maior na temporada turística. Em Porto Seguro, há um total de 4.358 casos acumulados, um coeficiente de incidência 2.931,01 por 100.000 habitantes, considerado bastante elevado.
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