A América Latina diante do Grande Apagão

Responder à emergência exige um novo pacto social e uma ampliação do espaço fiscal com dívida, inclusive com a participação dos bancos centrais. As políticas de austeridade só prolongam as recessões e agravam a pobreza e a desigualdade

Uma família perto de uma estação de metrô em São Paulo na segunda-feira.Fernando Bizerra (EFE)
Nelson Barbosa Pablo Bortz Santiago Capraro

O coronavírus e a cotidianidade sanitária dantesca que ele desencadeou mergulharam a economia mundial em seu colapso mais profundo em quase um século, comparável apenas ao do crash dos anos trinta do século passado. Para a América Latina o impacto deste Grande Apagão será devastador, pois seu bem-estar econômico depende crucialmente de seu desempenho nos ...

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O coronavírus e a cotidianidade sanitária dantesca que ele desencadeou mergulharam a economia mundial em seu colapso mais profundo em quase um século, comparável apenas ao do crash dos anos trinta do século passado. Para a América Latina o impacto deste Grande Apagão será devastador, pois seu bem-estar econômico depende crucialmente de seu desempenho nos mercados globais de bens, serviços e capitais. E hoje é golpeada pelo colapso do comércio internacional, dos preços das matérias-primas que exporta, da renda com turismo e remessas familiares. Sofre, também, a queda do investimento estrangeiro direto e uma fuga de capitais sem precedente, em um contexto de volatilidade financeira e cambial.

O efeito deste choque ―muito mais intenso que o de 2008 e 2009― deprime a atividade empresarial, fecha negócios e elimina diariamente milhares de postos de trabalho, agravando a pobreza e a desigualdade. Este drama inédito empurra a região para a recessão mais profunda e prolongada de sua história moderna. Para enfrentá-la e reduzir os danos, são urgentemente necessárias respostas extraordinárias de política econômica e social nos âmbitos regional, nacional e internacional.

Para começar, cabe sublinhar que a magnitude de recursos a mobilizar, a complexidade de decisões sobre distanciamento social, identificação de atividades essenciais e canalização de fundos para a saúde e para outros objetivos prioritários coloca o Estado em uma posição especial. Na emergência, é o único agente com credibilidade e capacidade legítima para tomar decisões sobre o uso de recursos em escala nacional para enfrentar a pandemia, aplicar as políticas no território e estabelecer seus mecanismos de financiamento.

A política fiscal e social deve canalizar oportunamente recursos para a saúde, para assegurar a subsistência dos mais afetados pela paralisação econômica e para preservar postos de trabalho com apoios diretos às empresas. Para acompanhar o retorno ordenado às atividades, deve aplicar uma política contracíclica para impulsionar a pronta recuperação econômica.

Quanto à política financeira, responder à emergência sanitária-econômica exige garantir a ampliação do espaço fiscal com dívida interna, talvez inclusive com a participação direta dos bancos centrais. Esse financiamento da dívida pública pode representar risco para a estabilização macro de médio prazo. Mas este é menor que a ameaça à subsistência da população e que o risco para a paz social. Dada a emergência, até mesmo algumas agências de classificação de risco veriam com bons olhos programas contracíclicos, embora pressionem o espaço fiscal em alguns pontos do PIB, se fossem acompanhados de reformas fiscais a ser adotadas na recuperação para garantir a sustentabilidade da dívida. É reconhecido que as políticas de austeridade prolongam as recessões e agravam a pobreza e a desigualdade.

A ampliação sustentável de espaços fiscais nacionais torna indispensável a cooperação de organismos multilaterais para garantir liquidez e respaldo financeiro de balança de pagamentos. Também exige a regulação de fluxos de capital para minimizar o efeito devastador de sua fuga, que exacerba a restrição externa. É urgentemente necessário expandir as alocações de direitos especiais de saque do FMI. Além disso, para vários países, a saída da crise atual pressupõe uma reestruturação da dívida soberana e o perdão parcial.

O Grande Apagão inaugurará respostas extraordinárias ―mencionadas acima― em políticas macroeconômicas e sociais em nível nacional, nova regulação regional de fluxos de capital e mudanças na arquitetura financeira internacional para reduzir as pressões sobre países devedores. Há concordância de que a organização de cadeias globais de produção terá de ser repensada, introduzindo-se a noção de atividades essenciais.

A lição mais importante que a pandemia nos deixará será reconsiderar a noção de público e privado na busca de uma nova agenda de desenvolvimento. Ela revelou que a saúde de todos depende da dos mais vulneráveis; muitos deles não têm acesso à água para o básico: lavar as mãos. Revelou uma grande fragilidade social, na qual a subsistência de vastas maiorias é vitalmente ameaçada por interrupções de algumas semanas na atividade produtiva. Revelou desigualdades dilacerantes entre jovens e crianças quando o fechamento de escolas cancelou para muitos o acesso a uma educação de qualidade, a café da manhã e a um ambiente livre de violência.

A pandemia e seus efeitos nos obrigam a pensar em uma espécie de Plano Marshall para a região, baseado em um novo pacto social global cujo pilar seja assegurar, em um marco de direitos e obrigações dos cidadãos, proteção social universal, assistência básica e acesso a uma educação de qualidade. Sua viabilidade residiria no compromisso dos atores políticos, econômicos e sociais relevantes para uma igualdade muito maior na distribuição dos benefícios do crescimento, para uma nova agenda de desenvolvimento sustentável e inclusivo. Sem este pacto, sem as políticas contracíclicas e mudanças no sistema financeiro global, o futuro será cancelado para os pobres da região, e com isso o nosso enquanto sociedade civilizada.

Nelson Barbosa é ex-ministro da Fazenda do Brasil e professor da Fundação Getúlio Vargas, Pablo Bortz é professor da Universidade Nacional de San Martín, Santiago Capraro e Juan Carlos Moreno-Brid são professores da Universidade Nacional Autônoma do México, José Antonio Ocampo é ex-ministro da Fazenda da Colômbia e professor da Universidade de Columbia, Leonardo Vera é professor da Universidade Central da Venezuela e Matías Vernengo é professor da Universidade Bucknell.

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