_
_
_
_
_
Coluna
Artigos de opinião escritos ao estilo de seu autor. Estes textos se devem basear em fatos verificados e devem ser respeitosos para com as pessoas, embora suas ações se possam criticar. Todos os artigos de opinião escritos por indivíduos exteriores à equipe do EL PAÍS devem apresentar, junto com o nome do autor (independentemente do seu maior ou menor reconhecimento), um rodapé indicando o seu cargo, título académico, filiação política (caso exista) e ocupação principal, ou a ocupação relacionada com o tópico em questão

Escrita automática

No final do XIX, as sessões de espiritismo se transformavam cada vez mais em projetos de pesquisa científica, dotados de protocolos exigentes, para diferenciar os verdadeiros fenômenos dos enganos dos impostores

Antonio Muñoz Molina
Henry James
O escritor Henry James (à esquerda) e seu irmão, o psicólogo William James, em uma imagem sem data.Bettmann (Bettmann Archive)

Henry James escreveu algumas das melhores histórias de fantasmas da literatura, mas era seu irmão, William James, que acreditava neles, como muitas mentes ilustres da tardia época vitoriana, mentes de formação científica convencidas de que o método experimental, tão frutífero no avanço do conhecimento, poderia definitivamente demonstrar a perduração da consciência humana após a morte. As sessões de espiritismo eram uma forma de entretenimento das classes abastadas, mas no final do século XIX se transformavam cada vez mais em projetos rigorosos de pesquisa, dotados de protocolos exigentes, para diferenciar os verdadeiros fenômenos de comunicação do outro mundo dos enganos dos impostores, alguns dos quais se aproveitavam de avanços tecnológicos tão convincentes como a fotografia.

Médiuns de muito sucesso organizavam cerimônias que contavam com a participação de um fotógrafo, que ao usar um tipo de placa excepcionalmente sensível podia captar ao lado da imagem de uma pessoa enlutada pela perda de alguém a presença quase impalpável de seu saudoso fantasma, convocada pela força simultânea da dor e das poderosas energias mentais do médium, que com muita frequência era uma mulher. William James, pai da disciplina moderna da psicologia, foi um dos fundadores da Psychic Research Society, que gozou de um prestígio parecido ao de outras instituições superiores de pesquisa, e que durante muitos anos realizou experiências com todos os tipos de controles técnicos, ainda que com resultados que nem sempre pareceram corroborar as expectativas dos estudiosos. A PRS não era um clube de desconhecidos e excêntricos. Chegou a ser presidida por vários prêmios Nobel de Física e de Fisiologia, e entre seus sócios mais proeminentes estiveram Henri Bergson, John Ruskin e o ex-primeiro-ministro britânico Gladstone.

Em 1869, o próprio Charles Darwin participou de uma sessão de espiritismo organizada por seu irmão Erasmus, mais inclinado do que ele à essa classe de indagações, e ainda que tenha visto o pé de uma mesa se mover e se chocar com o solo, e escutado uma voz queixosa na escuridão, não se convenceu das visitas astrais que a seu irmão pareciam irrefutáveis.

Mas Erasmus estava longe de ser o único praticante convicto do espiritismo que Darwin conhecia. Seu colega, e até certo ponto competidor, Alfred Russel Wallace, que havia elaborado, quase ao mesmo tempo que ele, a teoria da seleção natural, também era um espiritista entusiasta. Acreditava na existência de mentes “desconectadas de cérebros físicos” e defendia com todo o tipo de argumentos técnicos a autenticidade das fotografias de espíritos e ectoplasmas. Darwin, um homem moderado e muito cauteloso, temia não sem razão que esses fervores de Wallace acabassem desacreditando a teoria da evolução. Muitas pessoas chegavam ao espiritismo empurradas pela dor de uma perda. Charles Darwin foi para sempre anuviado pela morte, aos 10 anos, de sua filha Annie, após uma agonia de duração intolerável, mas essa desgraça, em vez de devolvê-lo à sua antiga fé religiosa e de incliná-lo à novidade da crença nos espíritos, o convenceu ainda mais de que o mundo não era regido por nenhuma providência benéfica e punitiva, e sim pelos mecanismos totalmente impessoais da seleção natural.

Leio essas coisas em um livro de John Gray, The Immortalization Commission (A Comissão para a Imortalização). Gray adora desbaratar as ficções da modernidade, que substituem as promessas da religião pelas de um progresso regido pela racionalidade e caracterizado por um aperfeiçoamento das faculdades intelectuais e o bem-estar social tão acumulativo e tão indubitável como o dos avanços científicos e tecnológicos. No final do século XIX, diz Gray, quando a ciência está substituindo a religião, muitas pessoas pedem à ciência que dê a elas o que a religião já não pode, a esperança e a certeza de que há vida após a morte, de que existe uma ordem universal que sustenta os valores morais que já perderam sua legitimidade religiosa. A mulher de Darwin se fortalecia pela fé contra a injustiça inaceitável do sofrimento e da morte de uma menina. Darwin sabia que sua mentalidade de cientista o privava desse consolo, porque a teoria que ele mesmo havia elaborado eliminava a necessidade e a justificativa de um ser superior que teria criado uma por uma as espécies, e que também teria colocado o ser humano no topo de todas elas, outorgando a ele uma alma imortal que as outras não tinham.

Era algo que Russel Wallace não podia aceitar, assim como uma pessoa tão cerebral como William James, que olhava com condescendência as fantasias literárias de seu irmão Henry, mas que fez um pacto com um colega espiritista, fixando as condições em que um dos dois, o que morresse primeiro, se comunicaria com o outro do Além. Muitos daqueles cavalheiros vitorianos viveram o suficiente para ver em 1914 o espanto de uma guerra que desmentia qualquer ideia de progresso, de estabilidade e de civilização, que mostrava a capacidade destrutiva dos avanços tecnológicos e colocava a ciência à serviço do massacre. A Europa se viu inundada de mortos e de desaparecidos, de fantasmas insepultos convocados por familiares ansiosos, médiuns que trabalhavam sem parar em seus gabinetes escuros, lucrando com a predisposição humana a não aceitar a realidade. Arthur Conan Doyle, membro proeminente da Psychic Research Society, já era um fervoroso partidário da solidez científica do espiritismo quando um de seus filhos foi gravemente ferido no front e morreu em um hospital em 1918. William Butler Yeats, o grande poeta moderno da Irlanda, compatibilizou a paixão amorosa com as comunicações extrassensoriais, e ainda recém-casado se trancava com sua mulher em sessões de escrita automática em que os dois se dividiam para transcrever à toda velocidade as mensagens ditadas pelos espíritos, que ocupam mais de 3.000 páginas do legado de Yeats.

As conexões entre as vanguardas e o disparate são muito pouco exploradas: a célebre escrita automática dos surrealistas é uma imitação direta do espiritismo, ao que André Breton foi muito aficionado. Sem dúvida, depois de tudo, é muito mais sábia a poesia inquietante, a ironia melancólica dos contos de fantasmas do incrédulo Henry James: e mais saudável e necessária, também nesses tempos.

Apoie nosso jornalismo. Assine o EL PAÍS clicando aqui

Inscreva-se aqui para receber a newsletter diária do EL PAÍS Brasil: reportagens, análises, entrevistas exclusivas e as principais informações do dia no seu e-mail, de segunda a sexta. Inscreva-se também para receber nossa newsletter semanal aos sábados, com os destaques da cobertura na semana.

Registre-se grátis para continuar lendo

Obrigado por ler o EL PAÍS
Ou assine para ler de forma ilimitada

_

Mais informações

Arquivado Em

Recomendaciones EL PAÍS
Recomendaciones EL PAÍS
_
_