Ridley Scott: “A história dos Gucci é como a dos Borgia e dos Medici: matavam-se uns aos outros para prosperar”
Em ‘Casa Gucci’, cineasta narra o assassinato do herdeiro do império da moda, orquestrado por sua ex-esposa em 1995, e adverte sobre os EUA: “Se não atenderem às inquietações dos seus cidadãos, o país vai virar uma república bananeira”
Sorridente e feliz, o cineasta inglês Ridley Scott aparece na tela da videochamada, a uma semana de completar 84 anos. Está num estúdio de Los Angeles para promover Casa Gucci, que estreiou nesta quinta-feira no Brasil, quando ainda está fresco o lançamento de O último duelo. A conversa com este jornal ocorre na noite de quarta-feira, 10 de novembro, quando ele ainda não havia se metido na confusão que criaria dias depois, ao soltar a língua no site Deadline: “Falemos de super-heróis se você quiser, porque vou arrebentá-los. [Esses filmes] são terrivelmente chatos, uma merda. Por que os filmes de super-heróis atuais não têm histórias melhores? Salvam-se principalmente pelos efeitos especiais, e isso está ficando chato para qualquer um que trabalhe com efeitos especiais”. E isso após recordar que ele mesmo já fez três filmes de super-heróis “com três grandes roteiros: Alien, Gladiador e a do Harrison Ford [Blade runner]”.
Prosseguindo com sua irritação, na segunda-feira passada, no podcast WTF, do humorista Marc Maron, Scott recordou que a bilheteria mundial de O último duelo mal supera os 27 milhões de dólares, cifra muito baixa para um filme orçado em mais de quatro vezes esse valor. Ele mesmo estava surpreso, até que encontrou uma explicação: “Tudo se reduz a que hoje temos espectadores que se criaram com estes malditos celulares. Os millenials não querem saber de nada que não seja mostrado no celular”.
Mas tudo isso não tinha ocorrido quando Scott, que nunca teve papas na língua, falou ao EL PAÍS. O cineasta está encerrando um mês de promoção do novo longa antes de se lançar a outro projeto, Kitbag, sua biografia de Napoleão protagonizada por Joaquin Phoenix: “Começo em janeiro com o Napoleão. Sou apaixonado por esse roteiro, por esse personagem. Os projetos foram se sobrepondo por causa da pandemia. Rodei Casa Gucci em 42 dias, talvez tenha sido um pouco mais rápido do que estou acostumado”.
Mas o projeto propriamente começou em 2006, quando sua esposa, a produtora costa-riquenha Giannina Facio, que havia vivido sete anos na Itália, recordou-lhe um crime que ocorreu durante a estadia de Facio na terra de seus ancestrais: o assassinato, em março de 1995, de Maurizio Gucci, herdeiro do império da moda que leva esse sobrenome, embora naquele momento já tivesse sido defenestrado da direção da empresa. Ele foi morto por pistoleiros contratados por sua ex-mulher, Patrizia. “Ela [Facio] é a produtora, já tinha feito quatro filmes anteriormente, e foi a alma do projeto. A história dos Gucci ecoa como a dos Borgia e dos Medici: matavam-se uns aos outros para prosperar. O amor, a paixão, os ódios... São os motores do mundo século após século. Não muda. E não aprendemos com os tempos passados. Como ocorreu com o comportamento machista com as mulheres. É hora de mudar de rumo nesse sentido”.
O filme deu tantas voltas que, de um primeiro elenco que há uma década seria encabeçado por Leonardo DiCaprio e Angelina Jolie, passou-se a Adam Driver (que também aparece em O último duelo) e Lady Gaga, com Jeremy Irons, Al Pacino e um irreconhecível Jared Leto como outros membros da família Gucci. Como cereja do bolo, Salma Hayek no papel de Pina Auriemma, pitonisa, amiga de Patrizia e cúmplice do assassinato. “É um elenco incrivelmente bom. Todos eram minhas primeiras opções quando começamos a pré-produção. E são dos maiores artistas da atualidade. Acho que foram fisgados pelo roteiro.”
“Ópera satírica”
A primeira coisa que emana de Casa Gucci é a obsessão de Scott pela italianidade na ambientação, figurino e comportamento dos personagens. “Eu gostaria de definir meu filme como uma ópera satírica, mas sem música. Casa Gucci seria uma versão atualizada das óperas clássicas. Sempre senti que a história abrigava uma sátira sobre aqueles acontecimentos, inclusive que exalava comédia”, reflete. A sátira é um gênero que Scott não trabalhou muito. “Bom, convenhamos que ‘sátira’ é o termo intelectual para dizer comédia [risos]. Se eu disser às pessoas que verão uma sátira, elas vão responder: ‘Afe, não, por favor, vai ser um filme para intelectuais’. Então vamos combinar que é uma comédia.” E sobre a queixa dos atuais Gucci sobre a imagem que o filme transmite da família e sua tragédia, o cineasta responde: “Eles não viram o filme, então... Além disso, os acontecimentos mostrados ocorreram há três décadas, foram escritos numerosos livros sobre eles, viraram um assunto de domínio público. Nunca senti que invadíamos nenhuma área privada.”
O diretor, que nunca escreveu um roteiro, considera que nos tempos atuais “as pessoas precisam rir para aliviar o peso deixado pela pandemia”. “Durante grande parte da história, o público vai se surpreender com o que é narrado, com a carga trágica, e mesmo assim a comédia não deixa de fluir de forma subjacente. Nos personagens de Jared Leto, por exemplo, ou Al Pacino... esses Gucci pai e filho. Eles entenderam muito bem o tom.” Pode-se compreender esta história sem as paixões latinas, sem explosões de ciúmes e amor? “Certamente é preciso um caráter latino. Houve um tempo em que pensei em chamar um elenco italiano, ou latino, mas nunca conseguiria levantar o orçamento [sem um elenco famoso]. Tampouco é que o filme tenha custado desmesuradamente, mas a ambientação necessitava de um investimento. Enfim, é parte do negócio. E com 5 ou 10 milhões de dólares eu não ia a lugar algum.”
Scott gosta de se definir como “um maníaco por notícias”. Seu rosto se acalora, sua fala se torna firme: “Chego em casa e todas as noites vejo duas horas de CNN e de outros canais de notícias. Estou muito inquieto com o que ocorre no mundo, como todos, suponho, e especialmente me preocupa o que ocorre neste país [os EUA]. A democracia é fundamental para o bom andamento do mundo. Se não atender às inquietações dos cidadãos, se o transformar em algo partidarista, este país vai virar uma república bananeira. É o que sinto que pode acontecer nos Estados Unidos.”
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