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Aquele verão caótico e sublime na Villa Nellcote, a mansão do rock’n’roll

Os Rolling Stones gravaram há 50 anos na Villa Nellcote, na Costa Azul, parte de seu álbum duplo ‘Exile on Main St’. A casa agora pertence a um oligarca russo. As lembranças permanecem

Keith Richards toca guitarra, diante dele, Tommy Weber, uma pessoa não identificada, Gram Parsons e sua acompanhante Gretchen Burrell, Anita Pallenberg e Jake Weber, no terraço da Villa Nellcote, 1971.
Keith Richards toca guitarra, diante dele, Tommy Weber, uma pessoa não identificada, Gram Parsons e sua acompanhante Gretchen Burrell, Anita Pallenberg e Jake Weber, no terraço da Villa Nellcote, 1971.DOMINIQUE TARLÉ
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Nada permite adivinhar hoje que, atrás dessa cerca em uma rua estreita ao lado dos trilhos do trem entre Nice e Mônaco, se esconde um dos lugares lendários do rock’n’roll. Somente a placa em que se lê Villa Nellcote revelará a fãs e eruditos que esta é a mansão onde, há 50 anos, os Rolling Stones gravaram seu álbum duplo Exile on Main St.

Aquele verão de 1971 foi caótico e genial no povoado costeiro de Villefranche-sur-Mer e na península de Cap Ferrat, onde está a mansão. Foram meses de desenfreio: dezenas de pessoas entrando e saindo pelo augusto portal, delinquentes da marginalia de Marselha misturados a um jet set de jovens milionários, noites intermináveis de gravação em um subterrâneo irrespirável durante a canícula do verão. A conjunção de desordem e talento trouxe à luz Exile on Main St., talvez o melhor álbum dos Stones, um inspirado compêndio da música tradicional norte-americana, o blues e o country.

Mas havia algo mais naquelas canções, algo do espírito da época, segundo o jornalista Robert Greenfield, que entrevistou Keith Richards, guitarrista da banda inglesa, na Villa Nellcote, e mais tarde escreveria vários livros sobre os Stones, entre eles um sobre sua estadia na Costa Azul e o clássico A Journey Through America With the Rolling Stones (Uma Viagem pela América com os Rolling Stones). “É possível que tenha sido o primeiro álbum feito sobre os anos setenta nos anos setenta” diz Greenfield da Califórnia. “O que reflete é a confusão em um mundo que saía da era hippie e entrava em uma era de drogas mais pesadas, de políticas também mais pesadas, um caos diferente do anterior, com menos esperança e menos otimismo”.

Da esquerda para a direita: Anita Pallenberg, Keith Richards (com uma guitarra de Eric Clapton), Gram Parsons e sua acompanhante Gretchen Burrell, na sala da casa, 1971.
Da esquerda para a direita: Anita Pallenberg, Keith Richards (com uma guitarra de Eric Clapton), Gram Parsons e sua acompanhante Gretchen Burrell, na sala da casa, 1971. DOMINIQUE TARLÉ

Agora a editora Le mot et le reste publica em francês Les Rolling Stones et Nellcote (Os Rolling Stones em Nellcote), uma história da mansão desde sua construção no final do século XIX até hoje escrita pelo jornalista Benoît Jarry e a genealogista Florence Viard. O livro inclui imagens de Dominique Tarlé, que morou em Nellcote durante meio ano e deixou um testemunho íntimo daquele prédio. La Galérie de l’Instant, de Nice, expõe até 19 de setembro as fotografias de Tarlé e publica La Villa, um catálogo com texto do fotógrafo, um dos personagens, como Greenfield, da variada dramatis personae que desfilou por aquela Villa cheia de histórias que nutriram a lenda stoniana.

Keith Richards (esquerda) e Mick Jagger (direita) na grande sala da Villa, 1971.
Keith Richards (esquerda) e Mick Jagger (direita) na grande sala da Villa, 1971. DOMINIQUE TARLÉ

Uma dessas lendas afirmava que durante a Segunda Guerra Mundial a Villa Nellcote abrigou uma sede da Gestapo. “Não há nenhuma prova”, diz Jarry em uma entrevista por telefone. “Os alemães fecharam a península de Cap Ferrat. Algumas casas foram ocupadas e sofreram degradações. Mas a Nellcote, visivelmente, não. Talvez só esporadicamente, durante um tempo para vigiar a baía, mas sem dúvida nada além disso”.

Como alguns youtubers milionários muitos anos depois, Mick Jagger, Keith Richards e companhia fugiam do fisco de seu país e se “exilaram” no sul da França. Era a primavera de 1971. Cada um se instalou em um lugar diferente da região. Richards, com sua companheira, a atriz Anita Pallenberg, e o filho dos dois, Marlon, alugou a Villa Nellcote, uma casa majestosa com um frondoso jardim, acesso direto ao mar e vista para a baía. “Eu acordava pensando: esta é minha casa?”, escreve o guitarrista em suas memórias, intituladas Vida. “Lá existia uma magnificência merecida após a mediocridade da Grã Bretanha”.

Jimmy Miller (no chão), Keith Richards (esquerda) e Mick Jagger (direita) nas tocas da Villa Nellcote, 1971.
Jimmy Miller (no chão), Keith Richards (esquerda) e Mick Jagger (direita) nas tocas da Villa Nellcote, 1971.DOMINIQUE TARLÉ

Tarlé, jovem fotógrafo que seguia obsessivamente as estrelas do rock, explica em La Villa que ficou sabendo do novo país de residência dos Rolling Stones, aos que conhecia, e uma manhã apareceu na porta de chez Richards. “Almoçamos juntos, como uma família”, lembra. “Passei a tarde tirando fotos e, depois de jantar, agradeci todo mundo por aquele momento maravilhoso. Mas então Keith me disse: ‘Seu quarto está pronto’. Fui dormir no andar de cima e fiquei seis meses com eles”.

Tarlé foi testemunha da vida familiar, com Richards levantando-se às sete da manhã para dar o café da manhã a Marlon, levá-lo ao zoológico de Mônaco e passear em um bote batizado com o nome do medicamento Mandrax. Logo as coisas descambaram. Richards conta em suas memórias que teve um acidente em uma pista de karts e o médico deu a ele morfina, o que ressuscitou, diz, seu vício em heroína. A vida da família expatriada quebrou em mil pedaços: chegou da Inglaterra o caminhão com um estúdio de gravação móvel e em meados de junho começaram as sessões de improvisação noturna.

Interior da Villa Nellcote, onde moraram os Rolling Stones durante 1971.
Interior da Villa Nellcote, onde moraram os Rolling Stones durante 1971.David Expósito

Greenfield estava em Cannes, cobrindo o festival de cinema para a revista Rolling Stone, e a revista o encarregou de entrevistar Richards. Ficou duas semanas. No ano seguinte cobriria a lendária turnê pelos Estados Unidos. “Era como estar na corte do rei Artur”, lembra. “Estava com a aristocracia. O restante não sabia quem você era, mas se estava com Keith, era alguém. E isso matou muita gente que queria ser como Keith, se vestir como ele, se drogar como ele, e nenhum continua por aqui. Eu sempre estava trabalhando e é o que me manteve a salvo. Quando acabei o trabalho, fui embora”.

Um final pouco feliz

A estadia de Keith e sua tropa em Nellcote acabou da pior maneira. Era outono quando alguém entrou para roubar a casa e levou nove guitarras e vários saxofones. Outro dia ocorreu um incêndio no quarto de Anita e Keith. Em novembro, convencidos de que corriam o risco de acabar presos e julgados na França por questões de drogas, fugiram para Los Angeles, onde terminariam o disco.

Villa Nellcote
Vista do mar da Villa Nellcote. DAVID EXPOSITO

A mansão, na época, havia se transformado em um foco de consumo e tráfico. No povoado vizinho, Saint-Jean-Cap-Ferrat, a proprietária de um café no porto, que tinha pouco mais de vinte anos em 1971, diz que alguns jovens da região se viram arrastados pelo turbilhão. “Fez estragos”, afirma no mesmo terraço onde Richards e Anita tomavam pastis, o licor típico marselhês, como se vê nas velhas fotos de Tarlé.

Tudo aquilo já está distante. Hoje os banhistas que vão à praia próxima passam em frente à mansão indiferentes ao que se cozinhou lá dentro durante a era dourada do rock. Os proprietários atuais, a família do oligarca russo Viktor Rashnikov, colocaram uma tela negra no portão de barras de ferro para preservar a intimidade. Uma câmera vigia. Quando os jornalistas tocam a campainha, acende uma luz e o portão se abre. Aparece um homem corpulento e explica que é o responsável pela segurança, se chama Álex, é romeno e os proprietários estão dentro e não vão permitir o acesso.

Charlie Watts (esquerda) e Keith Richards (direita), nas escadas do terraço com vista para o mar, 1971.
Charlie Watts (esquerda) e Keith Richards (direita), nas escadas do terraço com vista para o mar, 1971.DOMINIQUE TARLÉ

Em outro momento passa uma mulher dando saltos curiosos, correndo e dançando ao mesmo tempo enquanto em alto-falantes portáteis soa a cantiga Olé Torero, de Luis Mariano. Tem 71 anos e conta que correr e dançar ao mesmo tempo é sua maneira de fazer exercício. Os Rolling Stones? Não conhece. “Aqui morou uma atriz, acho”, diz. “Tina Turner?”.

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