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A briga de egos no Pixies que dinamitou a banda precursora do ‘grunge’. “Peguei a guitarra e atirei”

Kim Deal, a lendária baixista e cantora dos Pixies, completa 60 anos sem encerrar sua rivalidade com Black Francis. O líder da banda nunca viu com bons olhos que sua carismática companheira o ofuscasse. Apesar de uma tentativa de reconciliação em 2004, eles não se falam há quase uma década.

Black Francis e Kim Deal, dos Pixies, durante um show em Werchter (Bélgica) em 1989.
Black Francis e Kim Deal, dos Pixies, durante um show em Werchter (Bélgica) em 1989.Gie Knaeps
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“Déspota”, “controlador” e “invejoso” são alguns dos adjetivos que a mitologia do rock atribuiu nas últimas décadas a Black Francis, o líder da banda norte-americana Pixies. E principalmente depois que se revelou o ressentimento que sentia em relação a Kim Deal, a baixista e outrora compositora do quarteto. Ele próprio declarou em 2004 à revista Spin que “muito da suposta tensão e negatividade dentro da banda a que as pessoas aludiram ao longo dos anos é exagerada”. Como em qualquer boa história, e ainda mais quando está salpicada de ciúme, egos feridos e tensões internas, pode ser que tenha sido amplificada pela mídia. No entanto, por mais que seus protagonistas tentassem suavizar a realidade, os fatos falam por si.

Houve um tempo em que o Pixies estava predestinado a dominar o mundo. E, de certa forma, o fez. Sem querer, desde que a banda se formou em Boston em 1986, foi o arauto do rock alternativo que estava por vir nos anos noventa. Na verdade, como ocorreu com The Velvet Undergound no final dos anos 1960, sua própria existência encorajou uma nova onda de artistas a seguir seus passos. Como Kurt Cobain afirmou em inúmeras ocasiões, o trinômio formado pelo EP Come On Pilgrim (1987) e os álbuns Surfer Rosa (1988) e Doolittle (1989) o levaram a perceber que o rock, por mais feroz que fosse em sua aparência, poderia ser tão contagiante quanto um hino pop.

Olhando para a trajetória, pelo menos no começo, o Pixies parecia uma família bem ajustada. Black Francis, apesar de ser o compositor e vocalista principal, sempre deixava naqueles primeiros discos que Deal contribuísse artisticamente no estúdio. Sem ir mais longe, Gigantic foi composta a quatro mãos e se tornou um grande sucesso na boca da baixista. Mas a felicidade logo se transformou em tensão insustentável. Mais especificamente, a cisão começou a se manifestar em 1988.

“Não me lembro se foi em torno de Surfer Rosa ou talvez depois. Não estávamos psicologicamente preparados, mas um dia Kim veio para o ensaio e criou coragem para dizer: ‘Também tenho um monte de músicas’. Nunca tínhamos ouvido falar desses outros temas. Foi algo inesperado, mas seguimos a corrente”, Francis relembrou na Magnet em 2014. “A questão é que estávamos ensaiando com amplificadores de merda em uma sala de ensaio muito barulhenta. A gente estava chapado de tanta maconha e tentando dar sentido ao barulho, então, todas aquelas novas peças e estruturas de acordes, é claro, não se encaixavam. Nós, os demais do grupo, falávamos sobre isso, e dissemos: ‘Sim, o novo material que você trouxe hoje parecia um pouco diferente. Realmente não parece funcionar’. Quem sabe se era mesmo bom ou não? Havia uma maldita cacofonia quando o ensaiamos. Então fomos falar com ela, começando meio assim ‘Kim…’. Como era muito tímida, só respondeu: ‘Oh, está bem, não se preocupe com isso’ “, acrescentou.

Black Francis e Kim Deal, dos Pixies, durante um show da turnê que os reuniu em 2004, em Davis, Califórnia.
Black Francis e Kim Deal, dos Pixies, durante um show da turnê que os reuniu em 2004, em Davis, Califórnia. Tim Mosenfelder (Getty Images)

Nas páginas da Spin, Kim Deal recordou a situação de um modo diferente. “Quando os repórteres perguntavam ‘Por que Kim não canta mais?’, ele se levantava da mesa, se comportava muito mal. Obviamente, esse se tornou um botão que a imprensa pressionava sempre. As pessoas adoravam Gigantic, e até a cantavam em nossos shows. Teriam que lhe perguntar se isso o incomodava. Eu não sei e não me importo. Não é da minha conta.” E justamente, na mesma publicação, Francis forneceu a chave para o assunto: “Eu tenho um ego. Você tem que ter um ego para fazer isso. Naquela época estávamos tocando e eu dizia a mim mesmo: ‘Estou fazendo todo o trabalho. Ela está fumando um cigarro e o público a adora. Por que estou dando minha pele escrevendo todas estas malditas canções?”.

A situação só piorou em 1989 durante a turnê de apresentação de Doolittle. Na Alemanha, além do fato de que Deal esteve prestes a ser demitida por se recusar a tocar em Frankfurt, Francis explodiu contra ela chutando seu violão em um show em Stuttgart em 15 de junho. Ele alega que fez isso porque “chegou uma hora atrasada e era um show com entradas esgotadas”. Logo em seguida, segundo contou à Spin, ele se arrependeu da cena: “Foi uma dessas coisas estúpidas que a gente faz. Hoje, se alguém se atrasasse uma hora para um show, eu diria: ‘Rock and roll, cara!’. Não seria um grande problema. Quando você é jovem, está hiperativo. Eu não precisava ficar frustrado. Simplesmente peguei a guitarra com o pé e a joguei no palco. Foi a única vez que brigamos no palco. O público adorou, é claro. Foi vergonhoso, uma dessas coisas que quando você faz, logo pensa: ‘Putz, não deveria ter feito isso’. Não sou uma pessoa agressiva, pelo menos fisicamente, e me senti muito mal depois”.

No final daquele mesmo ano, após o término da turnê, fizeram uma pausa. No entanto, Deal aproveitou o intervalo para materializar um plano em que vinha pensando havia muito tempo. Diante da impossibilidade de desempenhar um papel maior na direção musical da banda, já que Francis se recusava a lhe abrir espaço, a baixista se aliou à guitarrista do Throwing Muses, Tanya Donelly, para formar o The Breeders. Isso foi interpretado como uma atitude descortês. Principalmente porque quando o Pixies retornou ao estúdio em 1990, para gravar Bossanova, ela estava fazendo o mesmo com Pod, o lançamento de seu projeto paralelo. A vingança não se fez esperar: a partir de então Francis seria o único compositor do grupo. Por isso, tanto em Bossanova como naquele Trompe le Monde que chegou às lojas em 1991, a participação da Deal foi significativamente reduzida.

Apesar disso, de 29 de fevereiro a 23 de abril de 1992, o Pixies foi a banda de abertura do U2 na Zoo TV Tour. Logo após o término da turnê, Francis tomou a decisão unilateral de acabar com o Pixies. Ele simplesmente se limitou a enviar um fax para seus companheiros. A notícia só veio a público no início de 1993. É assim que ele relembrou na Magnet: “Não me lembro exatamente o que eu disse no fax, mas, sabe, estávamos em turnê o tempo todo. Eu estava tentando manter meu relacionamento com minha namorada, Jean Walsh, e os horários das turnês interferiam constantemente nisso. Além disso, havia aquela animosidade entre Kim e eu. Foi como uma guerra fria. Quer dizer, não agressiva, mas definitivamente passivo-agressiva. Não era mais divertido”.

“Olhando para trás, o que precisávamos era de alguém em nosso mundo que fosse inteligente o suficiente para dizer: ‘Veja, esses caras estão um pouco cansados. Têm trabalhado muito. E certamente precisam de umas pequenas férias. Precisam tirar seis meses de descanso e parar tudo o que estão fazendo para que possam recuperar o fôlego e continuar de onde pararam’. Se alguém nos tivesse dito isso, acho que faríamos isso e depois teríamos seguido em frente. Tudo teria sido resolvido”, acrescentou.

Contra todas as probabilidades, o Pixies se reuniu novamente no primeiro semestre de 2004 e encabeçou os principais festivais pelo mundo. Independentemente de o terem feito única e exclusivamente por dinheiro, o público acolheu com entusiasmo o seu regresso. Durante sua ausência, não só tinham sido descobertos por uma geração mais jovem (em parte, graças à inclusão de Where Is My Mind? no filme Clube da Luta), como também passaram a ser uma banda cult, uma referência indiscutível para o rebanho indie. Eram também outros tempos para Francis e Deal: enquanto ele fazia terapia para lidar com o rompimento com a namorada, ela estava sóbria havia dois anos.

Em todo caso, uma pergunta ainda estava latente: eles realmente tinham aparado as arestas? Por alguns anos pareceu que sim, mas, no final de 2012 (embora isso só tenha sido informado em junho de 2013), Deal abandonou o Pixies para sempre quando estavam em um estúdio de gravação no País de Gales. A razão era que, a não ser no palco, ela não queria se envolver com seus antigos parceiros em um trabalho discográfico. “Na verdade, eu não queria fazer um álbum e tinha sido bem clara sobre isso. Quando eles disseram, ‘Vamos fazer’, eu estava ocupada com meu trabalho solo e com a turnê do 20º aniversário do Last Splash [o segundo LP do The Breeders], então, estou bem. E eles estão indo muito bem”, declarou em uma entrevista ao The Guardian.

Quanto a Black Francis, ele narrou assim à Magnet o que ocorrera: “Chegamos a Gales e começamos a trabalhar, mas foi um pouco lento. De qualquer forma, tinha audácia. Sabíamos que tomávamos nosso expresso em determinada hora do dia, provavelmente antes que ela tomasse o dela. Ela entrou, pegou um cappuccino e nos disse: ‘Vou voar para casa amanhã’. Não queríamos discutir. Não queríamos nenhum confronto. Nunca chegamos ao fundo da questão. No fim das contas, me ligou do aeroporto quando estava entrando no avião. Acho que naquele momento eu já tinha me acalmado o suficiente para dizer: ‘Olha, faça o que você tiver que fazer. Ligue-nos quando chegar e se estiver interessada em voltar ... ‘. Mas ela não quis. Basicamente, foi embora. Para mim, ela estava infeliz com a situação, ou infeliz com sua vida ou o que fosse. Simplesmente não é feliz. Quero dizer, quando alguém não está feliz, não quer estar onde quer que esteja, seja o que for.” Desde aquele dia eles não se falaram mais.

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