Filipe Catto: “Os conservadores estão tapando o sol com a peneira. Vivemos o gérmen de uma revolução”
Artista apresenta no IMS Paulista um espetáculo visual onde a música ‘queer’ brasileira dialoga com fotos de Madalena Schwartz, que retratou travestis e transformistas na São Paulo dos anos setenta. Para ela, a sensibilidade das pessoas LGBTQIA+ sempre moveu o mundo das artes
Sentada diante dos espelhos de um camarim, com os longos saltos repousando sobre a mesa, Filipe Catto canta: “Você chegou e me envolveu /E o meu corpo estremeceu/ Me machucou, enfraqueceu/ E o tempo que passou/ Quem perdeu fui eu”. Na voz da artista e com um arranjo lento, Seu crime, hit dançante de Pabllo Vittar torna-se quase um desabafo. Na parede atrás de Catto, são projetadas fotografias de Madalena Schwartz, uma senhora de meia-idade e aparente esposa e mãe tradicional que, na década de setenta, retratou travestis e transformistas que movimentavam a contracultura na cidade de São Paulo. O espetáculo de vídeo-arte Metamorfoses protagonizado por Catto é um diálogo direto com a exposição As metamorfoses do Instituto Moreira Salles (IMS) Paulista, na qual serão exibidas até setembro as imagens da fotógrafa. Já o vídeo-arte estreou no último sábado, 3 de julho, no canal de YouTube da instituição.
“As fotos da Madalena parece que foram feitas ontem. Tem um recorte de liberdade e transgressão que tem muito a ver com o meu trabalho”, diz Catto por telefone ao EL PAÍS, ao comentar como recebeu o convite de Juliano Gentile, curador de música do IMS para inaugurar a série Instantâneas: a música em foto, que estreita a relação entre as duas artes. A cada edição, serão apresentados espetáculos inspirados em exposições em cartaz no IMS.
Em preto e branco e com uma hora de duração, Metamorfose traz uma sequência de músicas interpretadas pela cantora —Catto é uma pessoa trans não-binária— em diferentes espaços do IMS Paulista, contando com as participações especiais da cantora Maria Alcina, do bailarino, ator e coreógrafo Ciro Barcelos, expoente do grupo Dzi Croquettes, e da artista, maquiadora e performer Alma Negrot, residente da festa Mamba Negra e que, segundo a cantora “atualiza como performer o que era feito nos anos setenta”.
“Estar com esses artistas queer no palco é como se voltássemos no tempo da Madalena, não só porque ela retratou nossos corpos dissidentes, mas pelo contexto da apresentação artística”, comenta Catto, que desde o início da pandemia ferve as madrugadas com suas Love Catto Lives. Schwartz retratou com a sensibilidade de poucos o ambiente de camarim, a montação dessas artistas da contracultura, e esse ambiente é recuperado, de forma muito natural, no espetáculo.
A cantora, que já conhecia a obra Schwartz, mas da qual se aproximou mais recentemente, também faz um paralelo com a precarização artística que existia na década de 1970, durante a ditadura militar, e a que o Brasil arrasta há alguns anos e que hoje é agravada pela crise da covid-19. “A falta de recursos nos empurra, mais uma vez, para a revolução das linguagens. Meu trabalho é um cruzamento entre música e imagem. Agora que não temos mais o palco, o teatro, para explorar imagem e som, o vídeo, com a dimensão da performance, cumpre esse papel”, explica Catto, uma “cria do teatro apaixonada pelo cinema” que, junto com Juliano Gentile, assina a direção musical, teatral e artística de Metamorfose.
“A primeira coisa que quis fazer foi um cruzamento entre aquele mundo e o nosso. Por isso, no repertório tem Johnny Hooker, Pabllo Vittar, mas também tem Secos & Molhados, Gal Costa, Claudia Wogner... Essa comunidade, essa gente transviada que sempre existiu na música brasileira.” A trilha sonora inclui ainda ícones internacionais da contracultura, como Rebel Rebel, de David Bowie, e Walk on the Wild Side, de Lou Reed.
Sobre as repressões e violências no país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, Catto é categórica: “Nossa vida é barra pesada, não é glamour.” Por isso, no toque intimista que deu à música de Pabllo Vittar, ela propõe uma reflexão sobre os estigmas que ainda pesam sobre o amor e o desejo pelos corpos dissidentes. “A letra diz claramente: seu crime foi me amar. As pessoas transam com a gente escondido. A sociedade quer nos negar o direito ao afeto.”
Mas de cima do salto, com uma maquiagem impecável marcada por muito glitter nos olhos, Filipe Catto reafirma a existência dos seus, sua arte, sua liberdade, com olhos muito negros e serenos que atravessam como uma flecha quem a encara. “Os conservadores estão tapando o sol com a peneira. Continuaremos aqui. Continuaremos nascendo e vivendo e criando. A sensibilidade das pessoas LGBTQIA+ sempre foi o que moveu o mundo das artes.” Ela também deposita a esperança nas gerações mais jovens, que são socializadas fora dos padrões de identidades e expressão sexual tradicionais. “Acho que vemos o gérmen de uma revolução que já vem fora desses padrões, estamos falando de um mundo onde as pessoas não têm gênero. Essas gerações abrem caminhos para isso, mas por isso também é importante resgatar a arte e a cultura que faz parte da nossa história, para que elas saibam quem é uma Madalena Schwartz.”
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