Aline Bei faz do abandono uma dança poética em ‘Pequena coreografia do adeus’
Em sua segunda obra, a escritora retoma o tema do sofrimento feminino, mas com a esperança do rompimento de ciclos de dor
Que possibilidade de vida pode ter o fruto de um amor devastado? É a pergunta que perpassa quase toda a existência de Júlia Terra, uma jovem de vinte e poucos anos que busca a própria identidade em meio aos traumas e lembranças de uma infância entre as surras da mãe, Vera, e a distância do pai, Sérgio, ambos confinados em uma relação cujos escombros perduram mesmo após o divórcio. Para a protagonista de Pequena coreografia do adeus (Companhia das Letras), segundo livro de Aline Bei, o abandono é um como um cordão umbilical difícil de cortar. Pouco a pouco, no entanto, ela aprende a respirar o mundo e encontra na palavra escrita uma forma de salvação.
É a força desses começos —da infância, da juventude, da artista— que Bei quis contar. “A Júlia já nasceu na minha cabeça querendo ser escritora. Mas eu não queria trazer só aquela febre da escrita, que já foi muito contada no movimento beat. É como se a semente dela me interessasse mais. O que, dentro dela, com os traumas que ela carrega, fez com que ela se transformasse numa artista?”, explica a autora de 33 anos ao EL PAÍS.
Com sua prosa poética, em uma narrativa organizada em linhas desiguais como versos que não são versos, mas que quase acompanham o ritmo cardíaco de quem lê, a escritora nos apresenta Júlia menina, uma criança que desconhece o carinho e que despeja na escola —mais especificamente no rosto de algumas colegas— a dor do seu corpo cansado da violência materna. “Em cada surra que levei, ficou um pedaço de mim no chão”, escreve ela em seu diário.
Com a separação dos pais, os tapas e chineladas ficam mais frequentes, e a personagem tem, talvez, o primeiro vislumbre da opressão que opera sobre as mulheres: enquanto a mãe amarga o abandono do marido e se entrega à dor, o pai parece rejuvenescer, sempre com uma nova namorada, em um mundo de leveza e liberdade ao qual a filha não tem acesso. Em sua segunda obra, Aline Bei se debruça, mais uma vez, sobre o sofrimento feminino, tema da sua aclamada obra de estreia, O peso do pássaro morto (Nós), que lhe rendeu o Prêmio São Paulo de Literatura em 2018. Nele, a autora relata a vida de uma mulher marcada por um trauma, dos oito aos 52 anos.
“Queria falar da dificuldade que é carregar todas essas dores que as mulheres carregam. Dentro da dor, às vezes se age da pior maneira possível”, explica a autora. Ela não considera a mãe de Júlia desumana, apenas uma mulher ferida, que reproduz em casa o abandono e a raiva que recebeu da própria mãe —que, por sua vez, sofreu sua própria cota de violências. “Eu também queria muito falar de carma, disso de retribuirmos o que nos acontece com a mesma moeda. Sinto que a violência nos atinge muito mais os corpos femininos do que os homens”, afirma. Bei comenta que tanto o pai quanto a mãe da protagonista carregam o abandono no corpo —não se sabe o que aconteceu, mas Sérgio também foi deixado pelos próprios pais—, mas diz que ele lida com esse abandono de uma forma mais leve. “Porque tudo para os homens é muito mais leve.”
Em sua literatura a serviço das mulheres, Aline Bei aponta, no entanto, caminhos de esperança. Sob um teto todo seu —um quarto alugado numa velha pensão— Júlia Terra, jovem adulta, escritora iniciante, interrompe o ciclo do abandono e começa a abrir espaço para o afeto dentro de si. Vegas é um dos amigos que a jovem faz no café em que trabalha como garçonete, é uma das personagens chave desse processo. O boxeador aposentado também foi uma das primeiras criaturas a surgir na mente da autora. “Gosto de trabalhar com personagens pares, espelhados, de alguma forma. A Júlia e o Vegas têm muito em comum, ambos têm a mentira como apoio, uma forma de ficcionalizar a realidade, como uma forma de imaginar quem gostariam de ser e não ficar presos em quem de fato são.” É com personagens como Vegas que a protagonista aprende que cada coração carrega pedras involuntárias enquanto a autora mostra aos leitores que, muitas vezes, os estranhos pesam menos que conhecidos de uma vida inteira.
Palavra como salvação
Em certo momento do romance, Júlia Terra se pergunta quantas versões de si mesma deixou pelo caminho para tornar-se a pessoa que é. Aline Bei, que nasceu com vocação de contadora de histórias, já se perguntou a mesma coisa e nunca pensou que seria escritora. Tendo estudado artes cênicas dos 14 aos 21 anos, sonhava em contar histórias dos outros com o próprio corpo. Quando trocou o teatro pela faculdade de letras, planejando ser professora de literatura, conheceu escritores de sua idade e aí sentiu-se “autorizada” a escrever também. “Comecei e nunca mais parei. Me conectei com minha potência de silêncio, de palavra na página”, conta ela.
Na Pequena coreografia do adeus, que escreveu durante quatro anos —a versão definitiva foi concluída em março de 2020—, também lançado em formato de audiobook, Bei pode unir as duas vocações ao gravar o próprio texto. “Foi um momento de muita felicidade. Por mais que eu tenha deixado de atuar há alguns anos, minha atriz está em mim e cria também, a escritora que sou faz parte dela”, diz ela, que tem o hábito de gravar a leitura das cenas de seus romances no celular para estudar a musicalidade do texto. “Eu tenho uma preocupação com a oralidade do texto, gosto de perceber se as palavras cabem na boca. Quero que esse texto tenha beleza também na voz se a pessoa quiser ler em voz alta.”
A autora diz que “escrever é um jogo de perder, é apanhar da literatura o tempo todo, é tentar e não conseguir, é lutar contra algo maior e mais forte do que você.” Por mais árdua que seja a luta, Bei —cujo livro de estreia vendeu mais de 32.000 exemplares, em parte graças à propaganda de guerrilha no Instagram, e tem publicação garantida na França— sai vitoriosa. Além dos números de seu êxito, a cena final de A pequena coreografia do adeus, de um lirismo quase cinematográfico e, ao mesmo tempo, um nocaute no estômago, é prova dessa vitória.
Ela dedica o livro a todos que “desesperadamente procuram uma casa”, um lar, um acolhimento, seja numa conversa, num abraço ou no olhar do outro. Em seu romance, onde a protagonista aprende a deixar de ser casca para ser inteira, esse lugar está garantido.
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