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Lavando a louça enquanto Quixote combate moinhos

O mercado de audiolivros se desenvolve no Brasil de carona na popularização massiva dos telefones celulares. Soa como o futuro, mas ainda tem longo caminho a percorrer

Vídeo: Lela Beltrão
Rodolfo Borges

Falta de tempo não é mais desculpa ―se um dia já foi― para evitar as quase 3.000 páginas de Em busca do tempo perdido, as 2.500 de Guerra e paz ou as 1.300 de Dom Quixote. As cerca de 60 horas exigidas para ler as obras-primas de Proust, Tolstoi e Cervantes podem ser percorridas enquanto se lava a louça ou durante corridas pelo parque ou séries de exercícios na academia. É como os norte-americanos ou alemães leem há décadas (inicialmente, com fitas K7), e como alguns brasileiros começam agora a colocar a leitura em dia, por meio de aplicativos de audiolivros como Ubook, TocaLivros e Auti Books.

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O combalido mercado editorial brasileiro tenta pegar carona nos telefones celulares para competir com outras distrações, como as séries da Netflix, os jogos do Playstation ou do Xbox e as músicas ou podcasts do Spotify. A estimativa é de que essa forma de ler represente nos próximos anos de 10% a 15% do faturamento do mercado editorial mundial, que movimenta atualmente algo em torno de 137 bilhões de reais por ano. Em 2019, a Feira do Livro de Frankfurt dedicou espaço para os audiolivros pela primeira vez.

No Brasil, os audiobooks apenas começam a aparecer nos índices de leitura, segundo Vitor Tavares, presidente da Câmara Brasileira do Livro. “A busca é, desde o dia zero, investir em conteúdo”, resume Eduardo Albano, sócio fundador e diretor de conteúdo do Ubook, que no ano passado começou sua expansão para a América Latina. O Ubook tem 15 estúdios de gravação e produz uma média de 50 audiolivros por mês. O aplicativo oferece todos os seus cerca de 15.500 audiolivros, 330.000 podcasts e notícias atualizadas diariamente ―este último um serviço foi criado para tentar popularizar o aplicativo― por uma assinatura mensal de 29,90 reais. Como tem parceria com operadoras de celular, conseguiu registrar 6 milhões de usuários ―a plataforma não divulga o número de assinantes por questões contratuais.

O real tamanho do mercado brasileiro de audiolivros parece mais próximo do número de assinantes da Tocalivros: 3.000, segundo Ricardo Camps, sócio-editor e diretor comercial da empresa. Ricardo fundou a empresa com o irmão Marcelo em 2014 e diz que o contato com as editoras ficou mais fácil com os anos. Ele conta que a Tocalivros optou pela qualidade na produção, o que torna o processo mais demorado e caro. Cada produção da empresa custa em torno de 10.000 reais e leva de dois a três meses para ficar pronta ―o aplicativo disponibiliza 1.500 títulos, que podem ser comprados avulsos ou adquiridos livremente por uma mensalidade de 19,90 reais.

Estilo

O produtor artístico Clayton Heringer se encarrega de um complexo trabalho de pesquisa fonética e musical para ambientar clássicos como Macunaíma, de Mário de Andrade. “Para gravar o 1822, de Laurentino Gomes, recuperamos uma partitura de Dom Pedro”, conta. A Tocalivros também promove a gravação de obras por seus próprios autores. Quando o EL PAÍS visitou seus estúdios na Barra Funda, em São Paulo, Alex Castro gravava seu Atenção. (editora Rocco). Por ter optado por viver da publicação de seus livros (e de doações de admiradores de sua obra), o escritor celebrava a possibilidade de explorar outra plataforma.

Enquanto a Tocalivros aposta em produções complexas, que podem envolver até 30 narradores, a Ubook corre contra o tempo para aumentar seu acervo. “Nosso livro, no geral, é uma gravação mais flat, com foco na voz do narrador, tentando passar uma experiência da leitura, para não limitar a imaginação do ouvinte”, diz Albano. A estratégia agrada por disponibilizar conteúdos com mais agilidade, mas alguns audiolivros (muitos deles são disponibilizados por outras empresas, e não necessariamente foram produzidos pela Ubook) ―a reportagem recebeu um voucher para experimentar o serviço― parecem gravados com pressa; contêm erros, gaguejos e a pronúncia apressada de palavras, algo que não se ouve em produções de empresas como a Audible, da Amazon, referência no mercado mundial de audiobooks.

A qualidade tende a aumentar com o desenvolvimento desse mercado, um novo nicho para atores, locutores e dubladores. A Auti Books, que chegou ao mercado em junho de 2019 como resultado de uma parceria entre as editoras Sextante, Intrínseca e Record, optou por não atuar diretamente na produção. “Não tem ninguém que possa produzir com a qualidade do editor”, diz Claudio Gandelman, CEO da empresa, cuja mensalidade por 19,90 reais dá direito a um livro por mês, como no modelo da Audible. “Como o mercado é muito novo, a qualidade é fundamental, e os editores estão produzindo material de excelente qualidade”.

A concorrência também deve ajudar a melhorar a qualidade dos produtos ―a Companhia das Letras tem promovido audiolivros e alimenta um podcast no Spotity. Além dos aplicativos brasileiros mencionados, já é possível comprar audiolivros pelo Google Play, pelo Kobo e pela sueca Storytel ― ainda é aguardada a chegada da Audible. Opções não faltam no mercado nacional. Falta o brasileiro descobrir o prazer de lavar a louça (ou jogar videogame ou ir para o trabalho) enquanto descobre tudo aquilo que perdeu enquanto não tinha tempo para ler.

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