Joyce Moreno, de estagiária de jornalismo à “velha maluca” referência da música brasileira
Pioneira ao ocupar espaços onde as mulheres eram raras, como compositora e instrumentista, Joyce é uma referência central na MPB para outras que vieram depois. Em ‘Aquelas coisas todas’, compositora lembra histórias com figuras como Chico Buarque e Vinicius de Moraes
O Brasil que se ergue das 350 páginas de Aquelas coisas todas: música encontros ideias (Numa Editora), livro de memórias e crônicas da compositora Joyce Moreno, é marcado pela leveza. Nele, a estagiária de jornalismo de 19 anos testemunha, ao lado de sua mesa, Lan fazendo suas charges na mítica redação do Jornal do Brasil dos anos 1960; reuniões musicais se espalham pela Zona Sul do Rio com elencos inimagináveis (“Vinicius e Tom nos abriam suas casas, seus corações, suas geladeiras”); o país se projeta além de suas fronteiras em momentos como Toninho Horta vivendo pela primeira vez o inverno de Nova York (“Isso aqui tá mais frio do que Barbacena”); Herbert de Souza, o Betinho, levanta eventos enormes nos quais a nobreza de suas causas compensa em muito sua inocência para a parte prática da produção (“Som se paga?”, pergunta, ao ser informado que não havia contratado o equipamento necessário para um show).
“Esse país foi um sonho que a gente teve, como Nelson Sargento disse a respeito de Cartola”, avalia a cantora e compositora.” Um sonho no qual muita gente no mundo acreditou. Na minha experiência de mascate musical, em qualquer lugar do mundo que você falasse ‘Brasil’, um sorriso se abria na mesma hora. Hoje, a reação é de pena. Estão com pena da gente”.
A leveza de sonho que se materializa no livro de Joyce ganha eco na prosa da compositora, seguidora da escola brasileiríssima da crônica —de textos saborosos, ares de conversa e ritmo envolvente. “A crônica é meio uma jabuticaba, uma coisa nossa. Em inglês nem tem nome, eles chamam de essay, ensaio, uma palavra dura para nomear algo como a crônica”, diz a cantora, que já era leitora voraz de Rubem Braga e Paulo Mendes Campos desde antes de seu estágio em jornalismo no Jornal do Brasil”
Seu método de escrita, porém, é guiado mais pela intuição do que por reflexões de estilo. “É fluxo de consciência, como meu xará James Joyce”, brinca. “Eu sento e vou escrevendo. Eu penso muito menos pra escrever textos como esse do que a letra de uma música, porque a letra tem que caber num espaço, numa melodia. Mas, como na canção, procuro ter ritmo no texto, um lado musical da coisa”.
A musicalidade do texto de Joyce não a faz ignorar os aspectos menos oníricos da realidade brasileira que testemunhou e testemunha. Há no livro a brutalidade sanguinária das ditaduras (entre os personagens, estão Stuart Angel e Tenório Jr., assassinados pela repressão brasileira e argentina, respectivamente), assédio sexual (por parte de jornalistas, contratantes, colegas), outras formas de machismo (o crítico que achou que sua música era boa demais pra ser de uma mulher) e covardias da indústria fonográfica (em retaliação a um processo seu contra a EMI, as grandes gravadoras se uniram para mantê-la fora do mercado). Mas em seus parágrafos Joyce atravessa tudo com a graça possível.
“Você pode falar de um jeito leve de coisas muito sérias”, argumenta. “Na segunda parte do livro tem muito assunto que eu podia ter abordado de maneira mais dura, quando escrevo sobre feminismo, direito autoral… Mas quis botar bossa nova na coisa. Os tempos estão duros, mas a gente não precisa ser como os tempos. Não quero ser como meus oponentes. Podemos enfrentá-los com aquela água mole que tanto bate até que fura. Como o capoeira, que não cai, e que se um dia cai, cai bem” (versos de Vinicius de Moraes para Berimbau, em parceria com Baden Powell).
Ou ouvir a referência à famosa fala de Bruce Lee (“Seja sem forma como a água. A água pode fluir, a água pode destruir. Seja água, meu amigo”), Joyce concorda: “É isso. Com paciência sempre. Porque tudo passa, tudo pássara, como diz Nelson Ned”, brinca, subvertendo poeticamente a citação original (“tudo passará”).
A segunda parte do livro a que Joyce se refere é Tudo é uma canção, que reúne seus textos mais recentes. Isso porque Aquelas coisas todas recupera na primeira parte (em versão revisada, ou “remix”, como a artista define) as crônicas publicadas em seu Fotografei você na minha Rolleiflex, seu primeiro livro, publicado em 1997.
“Revisei os textos antigos, mas deixei na ordem exata do livro original, porque eles tinham um encadeamento espontâneo que eu gosto. Na segunda parte eu dividi por assuntos: festivais, a questão do feminino, meus encontros com os artistas do jazz… E usei alguns textos que publiquei num blog que tive entre 2006 e 2016″.
Apesar de seu caráter memorialista, Aquelas coisas todas não tem tom saudosista. É um reflexo da própria trajetória da artista, que afirma sua filosofia: “minha geração são todos os que estão vivos comigo”. Assim como dialogava com mestres como Vinicius e Tom Jobim, sempre manteve uma troca intensa com os colegas de sua idade e, depois, com artistas mais jovens — sejam os DJs europeus que a descobriram na década de 1990, sejam compositores como João Cavalcanti e Alfredo Del Penho, seus parceiros.
“Escrevi olhando pra trás com carinho, mas sem sentimento saudosista. Sempre acho que o melhor lugar do mundo é aqui e agora. Não necessariamente neste momento, claro. No final do livro, eu incluí a letra de Tudo, que fala isso: ‘Tudo tem saudade/ Tudo é novidade’.”
A trajetória artística que se desenha em Aquelas coisas todas —com personagens que vão de Gonzaguinha a Johnny Alf, de Gil Evans a Chico Buarque— reflete a abertura dos caminhos estéticos de Joyce. Como ela escreve no livro, sua música é “neta do samba”, “filha da bossa nova”, “prima do Tropicalismo e do Clube da Esquina”, “sobrinha distante da música do Nordeste” e “amiga do jazz”. Mais do que a construção de seu estilo, porém, o livro traz uma narrativa de crescimento pessoal, inclusive com histórias de sua intimidade familiar (como a de seu pai biológico, que abandonou sua mãe quando ela estava grávida).
“Eu nunca falava disso pra ninguém, de toda dificuldade que minha mãe passou. Não queria que isso fosse aberto. Mas achei que agora podia abrir. A essa altura sou a velha maluca, que está chutando o balde”, diz, referindo-se ao último texto do livro, cujo título é A velha maluca é doida. “Começo o livro com a estagiária do JB que foi demitida por não aparecer numa matéria (por simples esquecimento, já que naquele dia estava com a cabeça no contrato que havia acabado de assinar com uma gravadora) e termina na velha maluca (“ainda usando camiseta, jeans e tênis”).
Pioneira ao ocupar espaços onde as mulheres eram raras, como compositora e instrumentista, Joyce é uma referência central na MPB para outras que vieram depois. Aquelas coisas todas, ela explica, mira exatamente nesse mesmo lugar de farol. “Escrevi pra mim, pros meus amigos, pra manter vivo tudo isso que testemunhei. Mas escrevi sobretudo pras meninas que fazem música hoje e que daqui a 40 anos vão estar contando suas histórias. As mulheres do futuro”.
Tu suscripción se está usando en otro dispositivo
¿Quieres añadir otro usuario a tu suscripción?
Si continúas leyendo en este dispositivo, no se podrá leer en el otro.
FlechaTu suscripción se está usando en otro dispositivo y solo puedes acceder a EL PAÍS desde un dispositivo a la vez.
Si quieres compartir tu cuenta, cambia tu suscripción a la modalidad Premium, así podrás añadir otro usuario. Cada uno accederá con su propia cuenta de email, lo que os permitirá personalizar vuestra experiencia en EL PAÍS.
En el caso de no saber quién está usando tu cuenta, te recomendamos cambiar tu contraseña aquí.
Si decides continuar compartiendo tu cuenta, este mensaje se mostrará en tu dispositivo y en el de la otra persona que está usando tu cuenta de forma indefinida, afectando a tu experiencia de lectura. Puedes consultar aquí los términos y condiciones de la suscripción digital.