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Pedro Almodóvar: “O algoritmo me apavora e horroriza”

O cineasta, que estreia nesta quarta-feira ‘A Voz Humana’, confessa que lhe parece um milagre chegar aos cinemas com um filme-experimento neste momento de tantas dificuldades e expressa muitas dúvidas sobre este novo sistema em que as histórias são escritas ao gosto do que dita o ‘big data’

Elsa Fernández-Santos
Pedro Almodóvar durante a filmagem de 'A Voz Humana'.
Pedro Almodóvar durante a filmagem de 'A Voz Humana'.

Estreia nesta quarta-feira em 70 cinemas, e com preço reduzido, A Voz Humana, curta-metragem de meia hora de Pedro Almodóvar inspirado na obra homônima de Jean Cocteau. Rodado em inglês e com a atriz Tilda Swinton como protagonista, o filme chega aos cinemas depois de deslumbrar no festival de Veneza, mas em meio a uma das crises mais profundas de que o setor se lembra e quando gigantes como a Disney abandonam a exibição tradicional e optam pelo streaming doméstico.

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<strong>Do que se trata.</strong> Em uma mansão, quatro libertinos fascistas, quatro prostitutas e um grupo de prisioneiros menores de idade passam 120 dias de devassidão absoluta, que inclui torturas e a morte de quem não segue as regras. </p> <strong>A polêmica.</strong> Para a maioria da crítica cinéfila, “Salò ou os 120 Dias de Sodoma”, de Pier Paolo Pasolini, é o filme mais polêmico da história do cinema. Um coquetel brutal de violência, sexo e destruição, cujo único objetivo é incomodar o espectador. “Calígula” (1979) seguiu seus passos anos depois, mas esta adaptação da obra do Marquês de Sade, ambientada na Itália fascista de 1944, leva a palma. Tachado de “pornografia infantil”, foi proibido em metade da Europa e ainda continua censurado em alguns países. De acordo com Pasolini, as cenas de coprofilia (como aquela em que uma menina come com uma colher a merda defecada por um dos fascistas) eram uma crítica à indústria do fast food. O diretor não pôde conhecer a repercussão de sua polêmica obra porque foi assassinado antes da estreia. Anos depois, foi lançada uma versão integral que inclui cenas reais de sexo.</p>
Como se atreveram a rodar estes 12 filmes que quebraram todas as regras nos anos 30?

Em entrevista que sairá na edição de novembro da Icon, e da qual antecipamos parte do conteúdo, o cineasta confessa que lhe parece “um milagre” chegar aos cinemas com um filme-experimento neste momento de tantas dificuldades. “A princípio, minha ideia de exibição era outra. Mas, depois da projeção em Veneza, os distribuidores nos chamaram para estreá-lo em cinemas na Espanha e no estrangeiro, e só posso dizer que é maravilhoso que aconteça e ainda mais em um momento como este.”

Não é a primeira vez que Almodóvar defende o ritual coletivo diante de uma tela como parte substancial da experiência cinematográfica, mas a persistência da pandemia está acelerando uma mutação do espectador que o deixa alarmado. Citando Susan Sontag, ele evoca a intensidade que exige “entregar-se à tela, introduzir-se nela”. “Sontag ficou muito preocupada com a chegada da tela doméstica porque se perdia esse arrebatamento que ela tão bem definiu”. “Aquela presença física avassaladora da imagem, para a qual é imprescindível ‘ir ao cinema’”, escreveu a ensaísta norte-americana, para quem o espaço doméstico “se presta a condições absolutamente desrespeitosas”. “Há muito que se está perdendo a batalha nas salas de cinema”, acrescenta o cineasta, “mas, depois de tudo isto, é uma catástrofe”. “Pessoalmente, não posso me queixar, sou o mais afortunado, mas a atividade cultural está muito parada e dela dependem milhares de famílias. É lamentável que aqui a cultura não seja, como na França, uma questão de Estado. O Governo preferiu um homem de partido [o ministro José Manuel Rodríguez Uribes], que não conhece bem a extensão dos problemas. O grande paradoxo é que nesta crise estão consumindo mais ficção do que nunca, que todo mundo está comprovando a capacidade da ficção de nos acompanhar e confortar. E alguém deveria repetir que essa evasão é cultura e por trás dela existem técnicos, atores e escritores dos quais se depende para que a tela não fique em branco.”

O sucesso de público de Dor e Glória (“para mim”, diz ele, “foi uma surpresa, porque eu achava que tinha feito um filme muito mais minoritário, para meus seguidores, mas funcionou muito bem em todo o mundo”) faz com que se sinta ainda mais independente diante de um mercado cada vez mais estranho para ele. “Sempre é imprevisível, mas a verdade é que agora, com o big data e o algoritmo, chega-se tão diretamente ao que o espectador deseja que isso só pode dar muito medo. Me apavora a intromissão em nossa intimidade, que simplesmente por usar um celular se saiba tudo. Estamos nos aproximando de uma distopia que me causa aflição porque vamos na direção da desumanização absoluta.” “O algoritmo”, acrescenta, “é o sonho perfeito de todos os testes, que sempre que pude recusei. A verdade é que também me dou muito mal com o algoritmo, de cara porque me dá muita raiva não o chamar de algoritmo, que é o que meu corpo me pede, e além do mais porque no meu caso nunca acerta bem as recomendações. Não sou o espectador típico de séries, embora veja algumas, mas sei por colegas que as grandes plataformas controlam o ritmo da dramaturgia com o bendito algoritmo em mãos. E embora isso funcione para elas, para mim é algo que me apavora e me horroriza. Por isso, este filme se nutre exatamente do contrário, da negação da fórmula. E nessa negação me senti livre como uma cabra montesa”.

Almodóvar e Swinton.
Nico Bustos

Nessa liberdade Almodóvar se conectou com a essência do cinema e do teatro por meio de um curta-metragem onde “a única coisa que não é artifício” são os sentimentos de uma mulher que em meia hora passa por todas as camadas anímicas possíveis. Uma mulher que nos primeiros minutos aparece perdida em um espaço abstrato e que afunda em sua solidão e em sua presença “fantasmagórica”, para depois movimentar-se por um cenário que invoca a cinematografia do cineasta e em que o espectador reconhecerá espaços, objetos e cores recorrentes em seu cinema, como as cozinhas ou os vermelhos e verdes de roupas, móveis e paredes. Um concentrado almodovariano aberto a novas possibilidades, como o uso de um idioma diferente ―"em grande medida, superei esse medo, não de todo, mas em uns 70%. E também estou feliz por ter ficado a sós com Tilda, sem intérprete, e nos termos entendido"― ou um inesperado canto ao amor animal que não acontecia desde Que Fiz Eu para Merecer Isto?, em que Chus Lampreave passeava acompanhada de sua querida lagartixa Dinero.

A Voz Humana é uma história de “desconfinamento e vingança” que condensa muitas das obsessões de Almodóvar, desde o dilaceramento da paixão à incomunicabilidade ou o enclausuramento. Mas o faz a partir de uma leitura contemporânea, “onde para uma mulher não há mais lugar para a submissão”, e com uma atriz insólita sob aquela pele dramática: “Só posso agradecer a fé cega e a dedicação de Tilda. Ela o encarou como uma grande aventura, desfrutou muito e a verdade é que eu também com ela”.

O cineasta fala de uma experiência livre em que tinha muito claro que o protagonista era “o artifício”. “E é por isso que foi tão agradável para mim fazê-lo. Foi um exercício muito saudável porque me permitiu voltar a sentir o espírito de meus tempos de Super 8, mas 40 anos depois”. Gostou tanto da experiência que pensa em repeti-la com algum outro curta-metragem, sempre em espaços únicos e com poucos personagens.  Enquanto isso, prepara a filmagem para o ano que vem de Madres Paralelas (mães paralelas), um roteiro que ele concluiu durante as semanas de confinamento no segundo trimestre do ano. “Com as dificuldades para viajar que há agora por todo o mundo, tivemos que deixar de lado o projeto que tínhamos com as histórias de Lucia Berlin para fazer um filme com menos viagens e poucos personagens.”

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