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Anne McLaren, a mãe da fertilização in vitro

Sua carreira científica de mais de meio século incluiu pesquisas e descobertas marcantes, como os estudos que tornaram possível a reprodução assistida

A doutora Anne McLaren, no Museu de História Natural de Londres.
A doutora Anne McLaren, no Museu de História Natural de Londres.getty
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Uma experiência quando menina despertou o amor de Anne McLaren (1927-2007) pela ciência. Aos sete anos, ela fez um teste para participar de um filme futurista, baseado em um conhecido livro de H.G. Wells. Interpretou uma garota sorridente do futuro, mas também muito interessada no passado da humanidade. Na cena, seu bisavô lhe falava sobre o avanço da tecnologia espacial, que tinha levado ratos até a Lua...

A pequena Anne não imaginava quanto aquela cena seria marcante, como mais tarde reconheceria, já que se tornou a mais famosa bióloga do desenvolvimento e da embriologia do século XX. Além disso, foi a primeira cientista a cultivar embriões de ratas fora do útero e também fez experiências com o cultivo de óvulos de ratas e seu desenvolvimento em embriões, o que levou ao avanço da fertilização in vitro.

Mas a doutora McLaren foi muito mais longe, já que assessorou o Governo britânico sobre os códigos éticos que deveriam ser seguidos na aplicação da nova técnica reprodutiva com humanos. Sempre buscou trazer a ciência para mais perto de toda a sociedade, preocupou-se com o papel das mulheres nas equipes de pesquisa científica e também foi pioneira na reivindicação de recursos do Estado para o cuidado dos filhos de mães trabalhadoras.

Anne Laura Dorinthea McLaren, seu nome completo, nasceu em Londres em 26 de abril de 1927. Anne era a quarta de cinco filhos de sir Henry Duncan McLaren, um político e industrial, bem como segundo barão da Aberconway, e de Christabel Mary Melville MacNaghten, uma destacada dama nos círculos sociais de Londres.

A pequena Anne aprendeu a ler muito cedo, antes mesmo de entrar na creche. Aos sete anos, participou com sucesso de um teste para um papel no filme de ficção científica Daqui a cem anos, baseado no romance de H.G. The shape of things to come. Durante sua breve cena com o ator Charles Carson, Anne recebe uma lição de história em uma grande tela de vídeo na qual se veem ratos voando para a Lua para escapar de doenças, uma façanha que Anne mais tarde quase completou em um projeto com a NASA destinado a enviar ratos ao espaço e que foi frustrado pelo desastre do ônibus espacial Challenger.

Apesar de suas grandes habilidades desde criança, sua breve exposição à educação formal foi interrompida pela Segunda Guerra Mundial. A família deixou Londres em 1939 para viver na propriedade de 30 hectares que possuía em Bodnant, no norte de Gales. Anne ficou sob a tutela do padre local, mas pouco aprendia e ela mesma passou a organizar a própria educação.

Durante cinco anos, Anne McLaren estudou por correspondência, impossibilitada de deixar a propriedade porque se tornara cuidadora dos três filhos pequenos de sua irmã mais velha, nascidos durante o serviço militar do marido. Mais uma vez, antecipando sua vida adulta, Anne secretamente construiu um galinheiro onde começou a criar galinhas como uma contribuição para o sustento da família e a fazer experiências com elas.

Em 1944, Anne voltou para a escola particular, em Cambridge. Lá aprendeu biologia, mas mais tarde optaria inicialmente por estudar literatura inglesa na faculdade. Nenhuma mulher de sua família havia frequentado a universidade, por isso foi necessária a permissão de sua mãe para que ela fizesse os exames de admissão. Naquela época, percebeu que sua preparação humanística não era tão boa como a científica, então, aos 17 anos Anne se mudou para o único lugar do país que oferecia a possibilidade de ingressar numa Universidade de Ciências, Oxford.

Em Oxford, estudou zoologia e a cidade se tornou sua casa pelos oito anos seguintes. A universidade lhe abriu novas portas e a encheu de entusiasmo ao lado de grandes professores como Peter Medawar, posteriormente agraciado com o Prêmio Nobel por suas pesquisas sobre o sistema imunológico humano. Anne estudou a genética dos coelhos e os vírus neurotrópicos. Obteve seu doutorado em 1952 com um tema de estudo sobre os vírus e o contágio, que era atual, pois naquela época o vírus da poliomielite estava causando muitos danos à população do Reino Unido. Nesse mesmo ano, ela se casou com seu companheiro, Donald Michie.

Na década de 1950, Anne McLaren começou a se concentrar na biologia do desenvolvimento, especializando-se em ratos. Em 1958 publicou, com John Biggers, um artigo histórico na revista Nature. Haviam cultivado com sucesso embriões de ratas in vitro, ou seja, em equipamentos de laboratório. Depois, os embriões tinham sido transferidos para o útero de ratas, onde deram origem a uma ninhada saudável. Esse experimento mostrou que era possível misturar espermatozoides e óvulos fora do corpo da mãe e criar um embrião saudável, que poderia ser gestado.

Vinte anos após esses estudos e a publicação do artigo, a fertilização in vitro (FIV) foi feita com sucesso em humanos pela primeira vez. Em 1978, Louise Brown se tornou a primeira pessoa a nascer depois de ser concebida in vitro. Tornou-se mundialmente famosa e ficou conhecida como o primeiro bebê de proveta.

Naqueles anos nasceram os três filhos do casamento entre Michie e McLaren: Susan Fiona (1955), Jonathan (1957) e Caroline (1959), embora o casal tenha terminado em divórcio amigável no mesmo ano em que nasceu a terceira filha. A doutora Anne decidiu então se mudar para Edimburgo para trabalhar no Instituto de Genética Animal e continuar suas pesquisas. Criou os filhos conciliando a maternidade com a carreira científica e por isso também foi pioneira em reivindicar recursos à administração do Estado para o cuidado dos filhos de mães trabalhadoras.

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Anne McLaren já tinha o reconhecimento e a admiração de seus colegas cientistas, de seus alunos e da sociedade. Seu modo de ser simples e amável, sua capacidade de trabalho e sua entusiástica pedagogia a tornaram muito popular em todas as áreas da sociedade britânica.

Em 1974, deixou Edimburgo e se mudou para sua cidade natal, Londres, para chefiar a recém-criada Unidade de Desenvolvimento de Mamíferos do Conselho Médico de Pesquisa. Em 1975 integrou a Royal Society, da qual foi vice-presidente entre 1992 e 1996, tornando-se também a primeira mulher eleita para o conselho em mais de 300 anos de história da entidade.

Depois, ficou em Edimburgo até sua aposentadoria em 1991, quando decidiu ir para Cambridge e se tornar a única pesquisadora científica no comitê governamental Warnock, criado em 1982 para desenvolver políticas relacionadas aos avanços da tecnologia de fertilização in vitro e da embriologia. Sua participação foi fundamental para a promulgação da Lei de Fertilização Humana e Embriologia, de 1990, uma legislação decisiva, embora polêmica, que limita o cultivo in vitro de embriões humanos a 14 dias após a criação do embrião.

Anne McLaren aumentou sua presença pública nas décadas de 1980 e 1990 para explicar suas pesquisas em biologia do desenvolvimento de maneira simples e, ao mesmo tempo, com rigor. Ao longo de sua carreira científica de mais de meio século fez contribuições pioneiras a dois dos aspectos mais importantes da genética da reprodução: fertilização e desenvolvimento embrionário em mamíferos e as implicações éticas da pesquisa com embriões.

McLaren descobriu a paixão pela aprendizagem bem cedo e sempre desejou despertar o mesmo entusiasmo pela ciência nas crianças e na sociedade em geral. Em 1994, a Associação Britânica para o Avanço da Ciência, uma instituição dedicada a promover a ciência para o público em geral (agora, Associação Britânica da Ciência), a elegeu presidenta. Por meio da organização e de seus eventos, McLaren levou ao público de todo o Reino Unido as maravilhas da ciência, da engenharia e da tecnologia, com o objetivo de tornar essas questões mais acessíveis a todos.

Em 2002, após a morte da segunda mulher de seu ex-marido, Donald Michie, eles retomaram a amizade e passaram a morar juntos em uma casa em Londres. McLaren, que publicou mais de 300 artigos científicos ao longo de sua vida, sempre foi fascinada pela reprodução dos mamíferos e, em especial, pela maneira como o ambiente contribui para certas mudanças na constituição dos embriões.

A triste morte de Anne McLaren se deu na tarde de 7 de julho de 2007. Ela estava viajando com o ex-marido de Cambridge para Londres quando sofreram um acidente de trânsito na autoestrada M11 nos arredores de Londres. A mídia inglesa destacou o falecimento de dois dos melhores cientistas do mundo no século XX. Haviam se conhecido quase seis décadas antes, como estudantes em Oxford, e, depois do divórcio em 1959, terminaram seus dias juntos.

A doutora Anne McLaren tinha 80 anos e estava em plena atividade, divulgando a ciência e incentivando os jovens cientistas, e especialmente as mulheres, a continuar suas pesquisas. O melhor legado é que seus resultados e pesquisas experimentais ainda são usados hoje para ajudar a fazer novas descobertas no campo da embriologia. Em sua homenagem, a Universidade Cambridge criou o Fundo em Memória de Anne McLaren para mulheres cientistas.

“Quantos casais teriam ficado sem filhos se Anne McLaren não tivesse levado o conhecimento científico para o debate político?”, foi a pergunta crucial que o cientista Robin Lovell-Badge fez em um artigo de jornal após a morte dela.

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